sábado, 27 de agosto de 2005

Depois da tempestade vem outra.

Lara Croft e Melinda Thompson surgiram do nada detrás das nuvens para me salvar. Com seus róseos focinhos e orelhas de veludo pediram seu preço, e paguei sem barganhas. Mudei meu fuso horário e me formei em guerrilha na selva com mestrado em sobrevivência no arame, porque, ou era isso, ou a adoção de olhinhos tristes do Morro do Telégrafo.
Mas aqui me tens de regresso, descendo o morro montada em meu cavalo preto, a silhueta contra o por-de-sol, e duas sombras longas me seguem desde as cercanias de Ypacaray.
(Xi, esqueci meu chapéu em cima da mesa).
Lara Croft puxava trenós na Terra do Fogo. Melinda uivava para os cactos no Vale do Silício. Nós nos encontramos sob a fria lua de cerâmica de um deserto e seguimos os rastros da civilização - que está sempre más allá, miragem que é.
Hoje foi queimada a última palhoça, e aqui estamos procurando restos de comida para assar na brasa, como boas sobreviventes que sempre seremos.

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Sinto muitas saudades da água que se vai, se vai, se vai ladeira abaixo.
E da tampa da garrafa que ele jogou fora sem ver os olhos assustados em duas letras arregaladas, tadinha.

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Tenho fome de notícias. E, muito mais, da interpretação das notícias, do destrinchar dos acontecimentos, do remexer das entranhas e tripas além das aparências. Sinto a básica necessidade de aulas, debates, cadernos especiais e certezas organizadas em tópicos e capítulos, notas de pé de página e muita bibliografia de apoio.
Sinto urgência do blablablá-de-segurança dos comentaristas de noticiários da tv, especialistas no assunto com doutorado e cátedra nas universidades de prestígio, os que explicam, no calor dos acontecimentos, todos os motivos pelos quais torres, metrôs e shoppings explodirão, a fome abaterá, a doença exterminará, o fogo consumirá e a água potável acabará, as balas perdidas nos encontrarão, as cidades submergirão com o ataque das tsunamis assassinas e todo projeto político sucumbirá ao jogo dos corruptos.
Sem eles eu fico achando que a notícia não tem muita importância, afinal.
A dimensão dramática do cotidiano, o que nos faz quase heróis da resistência ao Mundo Cruel, o que dá sentido, intensidade, consistência às nossas vidas ordinárias é a macro-explicação fundamentada e segura do Mal Inevitável.
Depois de saciada, vou à praia arrastando o peso da minha importância de cidadã consciente - para esquecer por lá tudo o que não seja sol, sal e sul se descobrindo em tanto azul.

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Por falar nisso, desejaria comunicar-lhes que deste momento em diante sou hippie em estado contemplativo, ou psicótica, ou uma alucinógena flor do campo e não me importo mais.
Desejaria, eu disse - mas não sou nada disso e ainda me abalam as questões da existência, que droga.

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Ah, ainda não contei das novas gerações que cultivo em vasos na janela da sala.
Bonitinhas e repolhudas que estão, regadas com planos de futuro diluídos em meio litro de água da bica.
Tá bem, é placebo, mas funciona.
Elas se dirigem para a frente e para o alto, com os bracinhos esticados, como girassóis.
Não querem mais do que têm, carinho e cuidado.
Quando chove ou venta forte, eu recolho os vasos para dentro da sala para não queimar as pontinhas tenras.
Não deixo os passarinhos se aproximarem, eles voam e dão mau exemplo.
Estão brilhantes e viçosas, as novas gerações sob o meu teto. Já sabem ler, escrever, contar e cantar hinos de louvor ao sol, e a mim.
De noite choram um pouco, e dormem abraçadinhas.
Acho que no ano que vem cultivarei cenouras, que dão menos trabalho.

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