domingo, 21 de novembro de 2004



Quando dezembro chegar eu amanhecerei na minha ilha por longa temporada.
Lá sou esposa do rei, e rainha, e mando no tempo, nas marés, nas ondas inclusive, no movimento ondulante dos pedestres e veículos e no sono dos cachorros que tomam sol na rua.
Tenho uma casinha na árvore e aquela maior em terra bem firme, guardada por Gauguin, com uma janela azul que dá para o lugar onde nasci e outra verde para onde morrerei.

Quando chove muito, ou os vulcões das redondezas regurgitam helicópteros engolidos na última reportagem, nós cantamos com os nativos os cantos tradicionais para acalmar os deuses enquanto salvamos os trabalhos e protegemos os computadores dos picos de energia.
Divido as instalações com um pesquisador louco, tão louco quanto pode ser um cientista louco, capaz de voltar das entranhas do vulcão cheio de ervas miraculosas, e do mar cheio de águas marinhas e pérolas e corais, e do muito longe cheio de presentes de antigas civilizações há muito ausentes.



E quando estou aqui distante eu não posso morrer, porque tenho de voltar sempre e sempre até que a lava faça o mar ferver e a água evaporar e a terra seque sob as cinzas e não haja mais chão firme sob aquele sol nublado por helicópteros desgovernados.
Ah, mas ainda falta muito pro fim do mundo.



Você sabe, não é aconselhável viver sem cafeína. Eu disse à Maíta: não se descuide das compras na minha ausência. Mas eles não ligam, têm um chá forte, uma espécie de droga líquida esverdeada que se equipara ao café e a outras drogas mais leves, mas não me satisfaz. Porque, o gosto, entende? tem gosto de capim com um tantinho de lama, e com açúcar só piora.



Lá existe o transporte em lombo de burro. É muito prático e moderno, quase não dá despesa e atravessa qualquer lamaçal sem atolar. Temos um burro próprio, com tração nas 4 patas. Trocamos por duas picapes.
Falando assim até parece que é um lugar selvagem, mas não se iluda: tem a melhor vida noturna do universo, para todos os gostos: inclusive a lua à beira-mar, atualmente minha vida noturna preferida.



Sabe, a gente não sente falta nem das músicas que mais gostava.
Tem umas fases em que se enjoa em pacote, de várias coisas.
Mas não enjoamos do mundo, só de coisas do mundo que existem apenas para incomodar, como por exemplo, diga lá você. Prefiro manter silêncio sobre esses assuntos delicados.

mar doce mar

Mas não, não pense que, por habitarmos o paraíso em certas épocas do ano, abandonamos a luta e os esforços pra melhorar o universo e tudo o mais. (Afinal, tudo depende de nós, se pararmos tudo desaba, não é, Megalô?)
De lá também são sentidas as vibrações na Força, mas fazemos o que podemos para que as águas sejam mais azuis e os coqueiros mais verdes. Entenda o que quiser, mas não subestime o poder do desejo.



Um beijo e até mais.

segunda-feira, 15 de novembro de 2004

fiquei imaginando Sylvia Plath planejando o dia seguinte ao de seu suicídio, o café da manhã das crianças deixado ao lado das camas, quanta preocupação com o futuro.

*

e o futuro, como vai? mapas secretos de terras a descobrir naquela mala em cima do armário.
um dia seguiremos avante e para o alto atrás de maiores novidades, mas não agora, que ainda estamos no presente.

*

mas você não percebe? o ar tem circulado mais leve pelos ambientes tateáveis e pelos cantos da internet.
(note bem a ausência de ácaros, você não espirra mais por quinze minutos seguidos quando entra nas salas de chat).

acho que conseguimos nos livrar de toda aquela gente cinzenta, ranzinza, pesada, eternamente TPMzada e deprimida, dos que fazem da sua dor um manifesto por um mundo pior. (não falo dos doentes e prejudicados pela vida, falo dos incompetentes que apenas criticam, porque não sabem fazer).

*

mas como dizia, fiquei imaginando que os diários eram escritos para serem publicados, mesmo no meio da maior dilaceração.
que triste esta necessidade de se fazer ouvir.
a ilusão de controlar a percepção alheia da própria imagem, mesmo depois de tudo perder o sentido.
de algum jeito, humanos são mal programados. ou nos desviamos, não era pra vivermos assim.

*

mas já que vivemos, contamos em diários. ou no blog.

*

o que eu gosto em você é que entende bem a desimportância das coisas.

*

das realmente desimportantes, quero dizer. como palavras num blog.

*

estava pensando na tal da construção da imagem. eu vi, ninguém me contou: perguntavam sobre os primeiros livros lidos na infância, e nas respostas só Heidegger ou Joyce ou Poe ou equivalentes. coitadas dessas crianças, que adultos viraram.

*

mas somos livres para criar, e devemos ser livres para criar.

*

por falar nisso, me traga um presente inesperado.

*

do outro lado do mundo, da Austrália, da Nova Zelândia. da Tonga da mironga do cabuletê, onde o ano nasce primeiro. da ilha de Páscoa ou de Galápagos, de um lugar bem estranho.

*

um dinossaurinho daqueles, um ornitorrinco filhote. (não, isto seria esperado).

*

então me traga uns planos para o futuro próximo, o próximo feriado, talvez.
umas idéias e tintas pra decorar a casa de Gauguin, um balanço para a mangueira.
peixinhos dourados.

*

o que importa de verdade, você sabe.

sábado, 13 de novembro de 2004


webmaster

*

a fome de informação e a sede de conhecimento:
a maior vantagem das rádios de internet, dos mp3 e de toda mídia de som digital é poder ver imediatamente os créditos das músicas.
(mas nas rádios tradicionais a conexão com os ouvintes era sempre estável, não era? se não me falha a memória, como a do computador).
o que gosto nas rádios em geral é ouvir pela primeira vez alguma coisa legal e pela 3465ª vez alguma coisa amada, como um presente dos céus sonoros só pra mim (com dedicatória e tudo).
por falar nisso, descobri que no momento gosto de Beck.

*

há 50 anos

*

tá bom, eu explico melhor.
mas é a última vez, aproveite:
eu não moro nem trabalho no alto da favela.
num bairro e no outro, distantes e em quase tudo diferentes, por essas coincidências do destino sou vizinha, mais ou menos próxima, de comunidades disputadas por diversas lideranças, digamos assim.
no trabalho, um pouco mais próxima do que seria recomendável para a saúde, mas não ganho adicional de insegurança.
no lar, do lado iluminado da Força - que é uma uma pedra lisa e íngreme - sem janelas abertas para o crime (a não ser o do pianista assassino de paciências do apartamento em frente).
e no entanto acredite: espero viver até os cem anos, e com um corpinho de 90, nesta mesma bat cidade, nestes mesmos bat arredores.


até porque hoje aquele passarinho (gosto de pensar que é o mesmo) visitou minha janela de novo, o que é um sinal de que ainda sobrevivem os passarinhos por aqui.

*

Rio, terra de contrastes
onde você pode ouvir beatles e sons alternativos em plena feira nordestina, saboreando devassas e/ou magníficas com as delicadezas & brutalidades comestíveis de um box típico (tipo assim como são típicos os lugares nordestinos em uma novela global).
e sair comendo curau e pé-de-moleque no papel de café-da-manhã.

*

filme noir.


""""
` ´
^
~


de noite eu sinto saudades de Moorea
mas sonho com as ruelas medievais de Assis - e o sol, o mesmo sol dos dois lugares me torrando a cabeça.

também tenho nostalgia do sol dos extremos, que nunca se põe ou nunca chega.
hoje tinha uma foca ronronando no telefone, eu entendo bem o que dizem as focas.
mas não vou voltar tão cedo.

*

invejo suas asas, as minhas são transparentes demais, instáveis demais, me deixam na mão de repente.

*

Mutarelli

sábado, 6 de novembro de 2004

derradeira estação

não quero mais ouvir sua batucada
digital
(informática metralha
sub-UZI equipadinha com cartucho musical
etc)

em Faluja pelo menos há um sentido, uma lógica, uns inimigos circulando pra lá e pra cá.
aqui até os cachorrinhos fofos matam velhinhas e posam pros jornais com as meigas linguinhas lambuzadas de sangue.

mas pensa que eu asso a mente nas chamas do inferno cotidiano? pois o vapor tremulante que se desprende do cimento fervente provoca miragens, e vejo coisas lindas.
não sei quantas vezes subi o morro cantando.

*

falando nisso, o puxa-saquismo é uma coisa abjeta.

*

(não tem nada com isso, apenas lembrei).

*

existe uma espécie de dependência entre atacante e vítima, se é que me entende, e tudo flui naquela gosma.

*

argh.

*

mas funciona, funciona.
abjetamente funcional.

*

(reparemos que puxa-saquismo não é o mesmo que elogio.
geralmente somos generosos e até perdulários nas críticas e mãos-de-vaca pros elogios.
porque não queremos parecer puxa-sacos abjetos, é compreensível.
mas temos que equilibrar melhor isso, pra não sair inventando defeito onde não tem e disfarçando nossa admiração embaraçosa).

*

aliás, inventar defeito pra tudo e todos que não correspondem às nossas mais viajantes expectativas: praticamente um esporte planetário.

*

é até engraçado assistir o processo de completar as lacunas do desconhecido com o que já é sabido e mastigado, a aplicação de estereótipos para enquadrar pessoas e atos inexplicáveis em modelos compreensíveis pelas mentes simples e a crença inabalável no poder da própria imaginação.

*

foi assim que Bush se reelegeu, parece.
os crentes, os simples, os tementes do desconhecido e um mundo decifradinho em dez lições.

*

mas no poder da imaginação pode-se acreditar sem censura, quando seu ofício é inventar mundos paralelos e eles são tão mais fáceis de habitar.

*

e também é inevitável reconhecer que todos enquadramos pessoas nos nossos preconceitos, e fazemos quase tudo o que criticamos, porque viver na prática conforme as boas regras é muito complicado mesmo e decifrar gente é tarefa pra uma vida longa.


*****


linka o meu que eu linko o seu:

entabular interações indiretas com carentes de popularidade, afeto digital e/ou discípulos pode fazer mal à paciência.

*

blogs e outros canais virtuais são espaços para as pessoas dizerem o que pensam.
e muitas vezes não precisamos ouvir uma segunda opinião.

*

pode-se tentar dizer o que os outros pensam, há quem prefira.

*

ah, e se esquecemos de botar aquele ícone indicador de ironia, as pessoas que mandam cartas de protesto contra os artigos do Agamenon Mendes Pedreira ficam sem entender muito bem.

*

também pode-se tentar manter comentários públicos e blog afastados como se fossem pimenta & olhos, imagina receber um assim

oie!!
nosss mto loko u blog!
passa lah nu mew dps, oks?
flw
=*******

definitivamente, não ia prestar.

*

alguns contatos imediatos de avançados graus ainda devem ser mantidos, porque Denise ainda está chamando.
mas é um grande alívio o encerramento de uma fase de confusão entre discursos fictícios e identidade, entre facilidade de comunicação e amizade.
a fase de máscaras, máscaras, máscaras e efeitos especiais.

*

restaria apenas o saudável da proposta.

*

vivendo e aprendendo.

*

sonhar não custa nada.

*

mas não, ainda não acabou.
quanto a mim, não é verdade que não leio mais blogs.
alguns eu leio com imenso prazer, e são descobertas recentes.
alguns eu li desde o início dos tempos e lerei enquanto existirem.
meia dúzia no total, e não é um modo de dizer.

*

mas você sabe, o mundo muda quando o eixo dos seus interesses se desloca para um universo desblogado.

terça-feira, 26 de outubro de 2004

Notícias da Ilha dos Caras:

Mariposas de outono.
Neste fim-de-semana do Aviador, homenageamos o Barão Vermelho (versão Snoopy), por causas exclusivamente estéticas, na figura argentina de S, nosso piloto particular. Que é, na verdade, um leão-marinho voador da Patagônia. Prateado, como soem ser os argentinos.
Homenagem comme il faut, rodeando a Tour Eiffel como um aviãozinho de carrossel, o Chapéu Mexicano ou as mariposa quando chega o frio dando vorta em vorta da lâmpida pra se esquentá. Paris é uma festa.

A professora Bete saiu(-se) bem no filme.
Sinto-me como se inventora da técnica de misturar vídeo e animação fosse. De Roger Rabbit pra cima. E nem ao menos editei a parada. Porém meu personagem tomou forma, voz e personalidade, e entrevistou um antigo professor do mestrado (que participou da minha banca e lembrava da minha dissertação!) sobre Paulo Freire, um mito da minha vida. E na gravação ele aceitou contracenar e cumprimentar uma cadeira vazia onde mais tarde eu sentaria a Bete.
Confesso que chorei. O que não é difícil, mas dessa vez tive muitos motivos.

Feng Shui para desgovernados
Perdeu a hora? A chave de casa? O freio? O chão? As palavras? A memória (que música era esta mesmo)?
Vamos dar um jeito nesta bagunça.
Um dia inteiro de remexeção nos armários, até tirar uma casa sobrante de dentro da outra.
Você entendeu. Jogar fora, atirar aos lobos, passar adiante, vender pro brechó, afogar no rio. Coisas, eu digo.
O que você salvaria num incêndio? Fora as vidas, claro, todas as sete. Eu, os álbuns de fotos (que servidor nenhum pode apagar) e o portfólio dos desenhos. Ah, e os documentos, pra não ter aquele trabalhão de novo. Memórias. Talvez alguns objetinhos muito importantes pra sobrevivência visual diária, que costumam classificar como decoração, mas você sabe, são outra coisa.
Muito já falei sobre este assunto, e insisto: jogar fora é o que há. Mais uma vez, abrir espaço pro que vem por aí. (Tão profundo, isso. Oriental por demais). E se repete numa rotina de prazer que não dá conta do que foi juntado e continua sendo. Juntar só para ter a alegria de jogar pela janela como papel picado de ano novo.

Sê breve na ausência
Vai tudo bem, o sol me acorda, os hibiscos florescem, o mar bate nas pedras, as gaivotas catam conchinhas, os gatos dormem, os cachorros fazem xixi na sala. Mas tudo está como suspenso num quadro parado esperando teu retorno, não demora.

terça-feira, 12 de outubro de 2004

graúna - Henfil

E eis que chega a vez do mblog subir no telhado e nos atirar lá de cima.
Não que eu fizesse tanta questão no momento, mas todas as imagens deste e de meus outros blogs (inclusive o portfólio dos desenhos) sumiram no espaço, sem prévio aviso. O que sobrou foi linkado diretamente de outros sites ou é resquício dos antigos álbuns do hpg, a que não tenho mais acesso para edição (eu reclamava tanto, mas pelo menos eles tiveram a gentileza de não apagar meu passado --> update suspiroso: não se pode elogiar... Tudo bem, mas não me rendo - taí tudo de novo).
Lá fui catar substituições de última hora pra evitar os deprimentes quadros vazios com xizinhos no canto. As cores descombinam, mas tomem como uma estética kitsch de protesto, algo assim. Não vou fazer outro template tão cedo, talvez nunca mais.
(update redundante: tá bom, tá bom, eu não aguentei aquelas cores e mudei as imagens. Até um blog tem que morrer com dignidade, tadinho. Mais tarde refaço o portfólio).
Pior foi pra quem perdeu o blog inteiro de repente. Ou pra nós leitores, que perdemos excelentes blogs de repente.
Mas são as regras. Quer gratuidade? Esteja preparado para as surpresas.

------


Já reparou? É o fim da democracia representativa.
Não há mais intermediários: o Traficante se candidata ele mesmo, o Banqueiro, o Pastor, a Funkeira, o Contrabandista, o Povo, o Diabo. Não há mais perigo de traição dos políticos-representantes-de-interesses que mudam de lado depois de eleitos e abandonam seus financiadores de campanhas.
Os Novos Políticos não prometem, suas figuras, currículos ou sobrenomes explicitam o que desejam fazer lá. Os eleitores não podem mais se queixar de ter sido enganados.




by Brant Parker

------

da série me larga, eu quero saltar:

1- Vista assim do alto mais parece o céu no chão.

Abrem a porta às quinze pras seis:
- Pessoal, a polícia tá subindo o morro, ninguém sai agora.

Sair, tá louco? E perder o espetáculo das balas traçantes?


*

2- Depois de trabalhar toda a semana, meu sábado não vou desperdiçar.

- Qualé, cara, foi você que avançou o sinal!
- POLIÇA FEDERAAAAAL!!! (Tira do bolso e brande no ar os documentos, mas não mostra). E se eu não estivesse com minha namorada aqui, te enchia de tiro nos cornos!!!


*

Sorte nossa de vivermos os dias atuais, de progresso tecnológico e evolução do saber.
O avanço científico da Humanidade possibilitou a troca de fatores aleatórios por um ambiente controlado para a generalização e a aceleração do processo de extinção da vida, inteligente ou nem tanto, sobre a Terra.


-------

kill bill
(da Telescópica)



------

Não mexe comigo.
Eu conheço a técnica dos cinco pontos para explodir o coração.


------



Interrompemos as férias (não minhas, do blog) para dar vazão a esta imensa perplexidade (inexplicável, já que nenhuma surpresa seria possível no contexto) com o rumo das coisas.
As coisas estão irremediavelmente perdidas por aqui. Eu moro na Colômbia. A gente não queria o povo no poder? Pois o povo, esta entidade com fins lucrativos, é assim como o formaram tantos anos seguidos de falta de educação e excesso de tv: preconceituoso, ultraconservador, fanático, comprável (bem baratinho), impressionável, obediente (servil) aos que lhe parecem "importantes" ou célebres (não necessariamente poderosos), corrupto (já dizia Hélio Luz em depoimento no documentário Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles e Kátia Lund: mas esta sociedade está preparada para uma polícia sem corrupção? que não dê jeitinho quando os desvios da lei forem os seus?), que admira e segue ídolos espertos (porque inescrupulosos) mas não aceita a liberdade de escolha do vizinho sobre o modo de levar a própria vida, mesmo que não perturbe ninguém.
Tá tudo dominado: de um lado o Poder armado, que pode ser o do morro, o da puliça, o dos meninos de rua ou o das gangues de pitboys; do outro lado o fanatismo religioso controlador do que nos faz mal ou bem, imune a argumentos e outras frescuras da racionalidade (quem está contra mim está contra Deus e ponto final).
Nenhuma novidade, por que tanto espanto?
Porque eu sempre disse que "apesar de tudo" nunca deixaria o meu país, o Rio de Janeiro, os arredores do meu bairro. Mas este "tudo" já está ultrapassando os limites da minha ampla tolerância, e não tenho idéia de pra onde poderia ir, eu sei que o mundo é todo cruel, mas eu quero ir, minha gente, eu não sou mais daqui.
(update arrependido: passada a tempestade, daqui não saio, daqui ninguém me tira. Ou talvez tirem. Ou talvez saia. Sei lá. Mas ainda não. Hoje fez um dia lindo.)

Graúna, de Henfil

terça-feira, 7 de setembro de 2004

histórias de surfistas

naquelas ameaças uma última chance: se você sentisse minha falta eu não iria embora, me pede pra ficar. se você dissesse qualquer coisa, se ao menos falasse comigo, ou olhasse daquele jeito, se fizesse um gesto na minha direção, qualquer coisa mínima que eu pudesse interpretar como interesse, se quisesse saber por que estou morrendo. me pede pra viver.
mas ninguém pede, mesmo querendo, e o cara entrou no mar, só entrou, entrou, e foi morar lá dentro livre de todas as dúvidas.


aqui deitada na areia o céu lá embaixo, lá embaixo, no fim do abismo, eu nunca saltei da pedra antes, não sei o que faria se uma onda se levantasse do céu como uma boca de tubarão, se estivesse sem prancha como estou agora, eu não me sinto muito bem nas alturas, eu sempre sonho com a onda gigante que arrasa a cidade e derruba os prédios e só me salvo porque estou por cima da crista como num cavalo, eu tenho pouco fôlego e já quase me afoguei mas disse que foi um desmaio, na verdade eu tenho medo do mar e da solidão que é ter que lutar pela vida fora da minha prancha.


se não fosse isto, esta transparência, a rede de elos de sol sobre meus pés no fundo, este gosto de limpeza (sabe, eu bebo um gole d'água do mar desde pequena no fim de cada mergulho, pra me purificar por dentro) e as bolhas brilhando com a luz da superfície, se não fosse isto ainda assim eu voltava todo dia só pra ver as manobras, as gaivotas flechando certinho seus alvos no meio das pranchas, será que nunca ninguém foi atingido na cabeça?
eu voltava pra ver como ele cresce todo dia e fica maior ali, meu filho que nasceu tão longe do mar e das habilidades motoras, que só aprendeu a andar aos três anos porque encontrou seu elemento, areia, sal, prancha e gaivotas.


ele não morre. atravessei o oceano e o que vejo do alto do Montjuïc? o mar, ele lá do outro lado sobre a pedra do Arpoador me desejando um feliz natal.
o que vejo onde quer que vá? o mar, senão ao vivo pelo menos em imagens, e ele deslizando sobre alguma onda, mesmo imperfeita, antes do café da manhã. aliás ele nem tomava café, tomava suco de tangerina ou abacaxi com cenoura.
levo sempre uma onda na frente dos olhos assim levemente translúcida, às vezes verde, às vezes turquesa, às vezes cinza chumbo. faz algum tempo que não volto ao Arpoador. ele morreu atropelado, atravessando o trânsito da Vieira Souto como se estivesse desviando de peixes.

domingo, 5 de setembro de 2004

Gastaré toda mi vida, y más, y más, y más

Acordei com os helicópteros na minha janela. Pensei que ainda estava na ilha, mas era a polícia carioca.

Tiros antes, foguetório de aviso, tiros depois. Bagdá? Palestina? Rússia? Nããã, era apenas a nossa

Zona Sul, campo de batalha

A Polícia Militar fez uma grande operação na madrugada de ontem nos morros do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, e do Cantagalo, em Ipanema, para impedir uma nova guerra do tráfico na Zona Sul. Tiros de balas traçantes iluminaram o céu. A explosão de granadas assustou os moradores dos bairros. O confronto entre policiais e traficantes começou por volta das 4h e só terminou às 7h. Pela manhã, os sinais da guerra estavam em paredes de prédios e em árvores atingidas por tiros em Ipanema.

Com a troca de tiros as ruas Teixeira de Melo, Nascimento Silva, Barão da Torre, um trecho da Visconde de Pirajá, em Ipanema, e o Túnel Martim Sá, que liga a Barata Ribeiro à Rua Raul Pompéia, em Copacabana, foram fechados pela polícia para evitar que inocentes fossem feridos por balas perdidas. Trechos de algumas dessas ruas já têm redução do valor do IPTU porque são consideradas áreas de risco. Uma creche e a Escola Municipal José Linhares não funcionaram. Pais que tentaram levar os filhos para a escola no início da manhã tiveram que voltar para casa. Um traficante foi preso e uma bazuca foi apreendida no Morro do Cantagalo.


Isso foi de quinta pra sexta. De manhã eu fui trabalhar de porre sem ter bebido, levei um tombo na ladeira e voltei pra casa antes que a batalha das sextas começasse no morro da área, ou no meio do caminho fechando outros túneis, ou levantando barreiras no meu próprio quarteirão.
É assim que a gente anda vivendo por aqui.

Que tal virar hippie nesta altura da vida? Lembra daquelas propostas de dispensar a sociedade de consumo, os bancos, o dinheiro, a burocracia, os controles do Grande Irmão, e viver de brisa, sombra, rede, água de côco e legumes da própria horta, chá de artemísia, sei lá, comer insetos que caem na sopa e mel de abelha com banana amassada e granola? Andar à pé ou de bicicleta, fazer a própria roupa, fazer um sonzinho coletivo em volta da fogueira e fazer filhos e filhos e muitos filhos batizados com nomes impronunciáveis ou naturebais, e levitar na fumaça até alcançar mundos inescrutáveis e inspiradores da paz entre os povos?
Pois é, isto nunca me atraiu.

Mas confesso que nessas horas de tiroteio sob a janela ardo de desejo de voltar pra ilha e viver a vida cantando, hi Lili hi Lili hi lo. Por isso sempre contente estou, o que passou, passou. O mundo gira depressa e nessas voltas eu vou.
Voltas pra dentro, como uma espiral que se fecha cada vez mais rumo ao próprio umbigo.

No entanto acredite, eu adoro viver nesta cidade apesar do que tem de ruim, porque o que tem de bom eu não encontro nos outros lugares. Já fui e já voltei e sempre voltarei.
Mas desde aquela madrugada o nunca más podré dormir, nunca más podré soñar, ganhou outro sentido, um pouco mais assustador.

(04/09/04)


*


eu adiei, adiei, adiei, resisti, mas finalmente vi o Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças.
o que posso dizer?
que o filme é mesmo muito bom, e que somos muitos os usuários dos serviços daquela empresa.


*


sai Luke Skywalker, entra a Princesa Leia.

viralata, 4 meses, aparentemente da espécie canina, provável descendente de lobos + gatos + cabritos e sorridente.
sim, ela sorri, incrédulos. com boca, olhos, focinho e orelhas.
mas finge que despreza câmeras e costuma posar entediada, no máximo um sorriso irônico de monalisa.


*


nossa modesta contribuição à difusão do pânico planetário:

VIROLOGIA

Criando um monstro

A gripe das aves surgida na Ásia trouxe o medo de uma epidemia capaz de matar milhões de pessoas no mundo. Mas para descobrir se o vírus das aves é mesmo tão perigoso precisa-se cruzá-lo com vírus de gripe que afetam seres humanos. É uma jogada arriscada e cientistas reconhecem que podem criar um monstro, caso um vírus misto escape. Tais experiências estão em curso em EUA e países asiáticos. Porém, não há garantias reais de segurança.


ainda bem que avisaram, obrigada.


*


pelas campinas gentis
voam lindas braboletas
com suas asas sutis
verdes, vermelhas e pretas
ah quem me dera avoar
como tão lindos bichinhos
só para as rosas beijar
sem me espetar nos espinhos


*


Brian Wilson vem aí, tararararara.


*


adivinha onde eu estou. siiiiim, acertou! ou não.


*


é longe, muito longe daí.


*


estou recolhida aos meus domínios, junto aos meus amores e produzindo ações de alcance limitado.
não que eu ache que este mundo aí não presta pra mim, entende? (aliás não tenho a menor paciência pra discursos tipo "todos são irracionais, imbecis, mesquinhos, ignorantes, medíocres, menos eu", vindos de maiores de 18 anos).
mas talvez eu AINDA não esteja preparada psicologicamente para usufruir da diversidade do mundo-cão contemporâneo cosmopolita tão estimulante, e prefira interagir com a micro-sociedade dos arredores, algo assim.
micro is beautiful.
posso confessar uma coisa? eu me sinto bem. eu ando pelas ruas e me sinto dona do pedaço, embora não seja. eu circulo nos lugares que me interessam e não sinto medo nem constrangimento nem estranhamento, eu sou dona dos pedaços onde minha vida evolui. Mas não faço questão de me meter onde não é a minha área, entende? (não precisa, estou falando por falar, sei que você não tem nada com isso.)


*


acho que entendi o lance da tolerância com o diferente, embora prefira cada vez mais conviver com os iguais.


*

não que eu goste de "todo mundo", o que seria hipócrita, nem que suporte "tudo" com estoicismo grego, masoquismo judaico-cristão ou a indiferença dos lesados, mas acho que encontrei o ponto da convivência tranqüila, o não-esquentar por pouco.


*


por que estaria discorrendo sobre esses assuntos no blog? sei lá.
nem sei por que ainda tenho blog.


*


acho que é pra ter onde despejar o que esqueci de dizer nas conversas de domingo à tarde.


*


aos domingos eu falo muito.


*


mas por que você ainda lê isto aqui? não entendo.


*


temos um apego irracional aos hábitos do passado, e uma tentativa de desapego igualmente irracional, forçada e frustrante, mas não podemos apagar o que fomos.


*


acho que algumas pessoas que passam por nossas vidas são indeléveis como aquelas tintas, ou resistentes como alguns filtros solares que não saem na água.
mas outras são esquecíveis, ou precisam ser esquecidas. aí tudo bem.
eu me esqueço, mas sinto um certo prazer em saber que os arquivos estão todos guardados ali na gavetinha.


*


sabe por quê falo disso, não é? por causa do filme, claro.
não pude deixar de lembrar dum tempo difícil de luta contra minha metade rebelde, que só queria provar que podia vencer os argumentos racionais pela teimosia e impulsividade adolescente.
agora eu acho aquilo tudo tão fácil de entender.
tão distante e tão claro.
mas quando lembro ainda me comovo um pouco, como quando conto uma história da infância, das mágoas que só se tornaram explicáveis - e perdoáveis - com o passar do tempo.


*


esquecer não é uma vitória.
vitória é lembrar com calma e não se importar mais.


*


tenho uma necessidade de recuperação do que foi mal digerido na minha vida, uma certa boa-vontade com os fatos negativos um pouco condescendente, reconheço, mas é pra consumo próprio.
não preciso nem de manifestações de reconciliação do outro lado, eu mesma me reconcilio com minhas memórias problemáticas e fico em paz com a ilusão de não ter inimigos nem adversários hostis em qualquer área da existência.
acho que isto é produto de uma auto-suficiência nada elogiável, mas quoi faire? é assim que eu me defendo das decepções e reveses desta vida cheia de som e fúria.


*


é, querido diário, assim são os domingos em Manoku do Oeste: auto-descobertas independentes de terapeutas (aqui só tem feiticeiros e gurus) e busca incansável dos atalhos para a Felicidade.

domingo, 29 de agosto de 2004

Assistindo ao documentário Promises (Promessas de um novo mundo), aquele sobre crianças árabes e israelenses da Palestina, eu me dei conta, internamente, de um detalhe discutido mil vezes na teoria mas nunca dantes realmente absorvido:
só os privilegiados podem ser bonzinhos impunemente.

Bonzinhos, digo: justos nas intenções, quase isentos, quase imparciais ao julgar desigualdades de direitos, desigualdades de acesso aos bens indispensáveis à vida e essas coisas todas.
E eu disse que podem ser, não que sejam.

Porque só os privilegiados têm acesso livre aos dois lados de todos os muros.
Só eles conhecem o que os outros estão perdendo.
Só eles podem ser condescendentes e renunciar aos privilégios.
Só eles não estão pondo a sobrevivência em risco cada vez que opinam sobre esses assuntos.
Só eles podem falar baixo, ter educação e boas maneiras, expor argumentos racionalmente e ser ouvidos por seus pares.
Só eles podem falar de paz, podem querer que tudo se resolva pacificamente, sem traumas.
Basta que cedam em seu poder, que abandonem seus privilégios e entreguem a parte que não lhes caberia por justiça. Tão fácil.

Também falo de nós, da classe média, e não só dos absurdamente privilegiados.
Falo de quem tem algum acesso a algum poder para resolver algum problema sem precisar de tocar o terror.

Quando a gente trabalha numa área carente de atenção, para um público carente de poder, a tentação está em tentar ser um(a) igual, disfarçar as diferenças aparentes.
Mas não é preciso quebrar barreiras pela identificação - condescendente, forçada - com o modo de vida dessa parcela da população, e sim com seus objetivos.

Porque os excluídos do mundo das decisões não estão precisando de "iguais" de outros mundos.
A consciência política que desemboca em ação transformadora não vem de fora, como a gente pensava na época infantil da militância política.
Vem da necessidade de ultrapassar o bloqueio da expressão, de ultrapassar os guetos e ser aceito e ouvido e atendido sem depender da condescendência e solidariedade pessoal dos "incluídos".

A ação que deriva desta necessidade pode não ser muito consistente ou preocupada com o futuro, pode ser inconseqüente ou ter conseqüências imprevisíveis, como um quebra-quebra de trens que enguiçam, como um bloqueio de estrada próxima a acampamento de sem-terra pra roubar cargas de caminhões, como um funk-brabeira de apologia aos donos do morro, modelos de imposição do "ponto de vista" dos excluídos pelas vias mais convincentes.

Mas eles não precisam de aliados que falem por eles. Precisam de novos patamares de ação, de alcance de voz, de se apropriar de instrumentos pra fazer valer sua voz e, então sim, poderem falar de igual para igual com os poderes todos. Sem precisar de tocar o terror pra ter atenção.

Tudo tão óbvio, tão sabido e discutido desde sempre, por estudiosos dos movimentos populares como Paulo Freire, não é? mas eu ainda não tinha mudado lá por dentro a ilusão de "dar consciência", de "esclarecer" pela educação.
No entanto, o melhor modo de esclarecer não é falar, é deixar falar. É dar, não a "consciência", mas a oportunidade de cultivar a consciência onde ela pode brotar.

Foi assistindo Promises que eu entendi melhor os meus limites, e o alcance da instituição em que trabalho.


*
girassol

vermelho

azul

laranja

totó

cozinha

dias de luz, festa de sol.


*


Estou gostando muito do meu trabalho, a ponto de sonhar ou tentar aperfeiçoar coisas durante a madrugada. Já desisti de me policiar nisto, o envolvimento total faz parte da constituição híldica. Como dizia Roberto Freire, sem tesão não há solução.

Por coincidência, a instituição fica numa região fisicamente carente também, mas o lugar não é tão importante, porque nosso público-alvo não são os nossos vizinhos. (O lugar só é pregnante quando voam balas sem endereço. Aí este se torna o detalhe mais importante das nossas inseguras vidas de população-alvo. Mas isto não é privilégio das áreas da linha 2 do metrô: no outro dia mesmo cheguei em casa, na Princesinha do Mar, e havia uma guerra no meio da rua, túnel fechado e carros da polícia sibilantes passando sobre as calçadas).


*


Meu hóspede canino, que se chama Luke Skywalker, vai embora no domingo que vem.
Talvez. Quem sabe. Se ele quiser e/ou se eu permitir.


*


Adorei minha festa de aniversário, no sábado mais passado. Senti falta de quem não veio, mas fiquei tão feliz com as presenças queridas brilhando os dentes brancos no escuro azulado, jogando totó na cozinha, tomando café da manhã na padaria, reafirmando certezas múltiplas e mútuas, tecendo redes quase visíveis, entendendo o valor do tempo.


*


Não estou voltando ao querido diário. Mas, entende, cada um reata laços com "amiguinhos do primário" como pode, e às vezes dá vontade de contar como vai tudo por aqui.
Olá, amiguinhos do primário recém-conhecidos. Por aqui vai tudo bem, obrigada.

terça-feira, 24 de agosto de 2004

I believe in miracles.

Você acredita que tudo pode ser resolvido assim de repente? Pois aconteceu naquele dia mesmo. Conquistei um futuro possível em 24 horas.

Vou te contar uma historinha: em 15 de dezembro, só pra ter uma data comemorável, um disco voador carregou minha vida pra muito, muito longe daqui, e tive que decidir as coisas de sopetão, da noite pro dia, dia após dia, e podendo mudar tudo nas próximas horas.

Como boa mochileira das galáxias, eu parti. Comandos em ação, percebe? Vida real. O que teve o ano passado de falta teve este de excesso.

O jet-lag entre planetas é mais violento, você sabe. E climas estranhos provocam miragens feéricas, lembrai-vos das auroras boreais e austrais.

Casei e mudei para um castelo de vidro nas estepes antárticas (como em Superman, acho que era o 2), situado ligeiramente acima do chão. Flutuante. Quando esquenta ele derrete um pouco, então chove lá embaixo.

Meses e meses de mãos geladas e coração quente, previsão zero, suspense e suspensão, idas e vindas, ansiedade e surpresas. Eu aprendi a voar, eu aprendi a cavalgar sobre o gelo, eu aprendi a pescar krill com as baleias e os japoneses, eu aprendi a domar tubarões e abomináveis homens das neves, eu aprendi a deletar com fé e a atravessar paisagens transparentes. Voltei a usar meus óculos amarelos.

Agora chega de pairar. Já é tempo de descer em terreno firme.

Não que se deva desistir de living la vida loca nas nuvens, mas entende, hora de abastecer.

Eu trouxe fotos, lembranças de viagem e um leão marinho da Patagônia pra criar na banheira.

quarta-feira, 18 de agosto de 2004

droga.
tantas mensagens em coreano no meu correio.

não digo que esteja certa, se estivesse não teria me ferrado sempre que tentasse agir por impulsos inadiáveis, mas por que raios a vida não pode ser mais simples? pra que tanta dificuldade, tanta tensão, tanta curiosidade borboletando lá dentro e nenhum movimento pra desatar o barbante da inércia enrolado nas pernas?

a gente alimenta esperanças com pastéis de vento. depois tem que andar por aí com a esperança gordinha na coleira antes que ela escape e galope entre os carros, antes que ela nos coma num acesso de fúria, pra gastar suas forças. pra não querer, não pensar nem achar nada. pra não perguntar nada a ninguém. pra não comer morcego. pra não produzir mais vento.

mas a droga da vontade de ver como seria se acaso fosse aponta no horizonte o tempo todo e é triste constatar como é fácil desistir dos nossos futuros possíveis.

sei lá, entende? mil coisas complicadas e uma loura querendo entender a tal palavra intraduzível.

sábado, 7 de agosto de 2004

Definir margens, diz ali. Cumpra-se. Definirei as margens:
Do lado direito você pode ver o mar, a montanha, o céu, o cenário pintado pro carnaval.
Do lado esquerdo você pode vislumbrar as coxias, as embalagens, a sucata, o lixo, o isopor, os ferros, os arames, os grampos, a armação.
Em cima você pode observar as câmeras que nos observam.
Embaixo você pode adivinhar o mundo que fervilha sob este terreno, os passinhos apressados de formigas que se esbarram pelas trilhas e trombam as cargas com as paredes do túnel; a barriga suja de barro das minhocas; o fluxo nervosinho de tudo o que corre nas veias, nos canos, no avesso, nos fios, nas raízes, nas tumbas, nas galerias úmidas cheias de morcegos góticos do metrô, nos porões do pensamento e do desejo.



CORAÇÃO SELVAGEM (Wild At Heart, EUA, 1990, David Lynch)
cartazes internacionais do melhor filme de David Lynch.



Horror nas almas simples


De acordo com Pereira, reforça-se hoje a confusão, com repercussões no cotidiano, entre os termos "transgressão" e "perversão". A transgressão questiona a realidade, mas a violência perversa apenas perpetua o que já está estabelecido.

(..)

"Uma vertente é a da crueldade como potência para dissolver o que nos aflige, ou seja, a crueldade como princípio desconstrutor. Nesse sentido, ela é a maior aliada na luta contra a crueldade fetichizada do contemporâneo. São duas formas que às vezes se confundem, mas a primeira gera pensamento de fato, uma intensidade, e a outra serve apenas para "épater les bourgeois", insere-se no contexto de banalização" diz Paula.


(Sobre o tema do livro "Estéticas da crueldade", Atlântica Editora, "reunindo artigos de pesquisadores do Rio que discutem as expressões da crueldade - ou as expressões cruéis - na arte e na mídia contemporâneas. São textos que abordam a maneira como a crueldade, esse subproduto da violência, tem se infiltrado nas subjetividades". É organizado por Ângela Maria Dias e Paula Glenadel, professoras de Literatura da UFF.)

guardando proporções devidas, pensei muito sobre isso vendo o Anima Mundi.
o que provoca a reação catártica nas platéias.
o conformismo cruel.
é chocante.
não pelas bigornas, tratores ou armadilhas, o que é parte do código dos desenhos animados, mas pela insistência da crueldade gratuita (sem graça e sem função, já que nem todo roteirista é Matt Groening, Trey Parker ou Matt Stone) como solução para as gags.
o que choca é a pobreza.
nos tempos de reinado Disneyano, fechar as cenas de humor com bebês, velhinhas, amiguinhos ou animais fofos triturados já foi revolucionário.
mas é que tá lembrando muito mais Comichão e Coçadinha do que Tom e Jerry, se é que me entendem.



no entanto, vos digo que aprecio muito tudo isso.
Dunia




os dias são mais curtos neste hemisfério lunar.


me perdoe a pressa, é a alma dos nossos negócios.




O Paraíso Visto Pelo Retrovisor Do Meu Carro

camaradas, mudei

me mandei do meu corpo morto

do meu modo torto de pensar

hoje, nada passa por mim

sem que eu deixe um amassinho

me saí tão perfeito

que os defeitos restantes

parecem enfeite do meu cérebro mutante

estive até pensando em ter um filho

para que a espécie frutifique e modifique a humanidade

me saí tão perfeito que tornei-me imune à tristeza

ou a qualquer sentimento mesquinho

não mais sonho com princesas de peles ásperas

habitando castelos destruídos

sonhando com o que não existe

fiz apenas isto:

tirei as teias de aranha da cama

a cama do quarto

o quarto do apartamento

o apartamento do nono andar

para que as nuvens possam vagar

sem serem atropeladas

estou morando no campo

numa casa de vidro

onde nada escondo

dos olhos insanos

pois minhas asas são as mãos de Deus

_________________________________

falta uma hora para tornar-me eterno

ou ser esquecido para sempre

(Angelo Rozalen)



no blog do Mário Bortolotto.




eu também tenho algo a dizer mas me foge à lembrança.





encerrando julho
tenho sorte. quando não dá pra escapar da pedrada, acontece levinha, pedra cenográfica de isopor.
tipo sair de acidente de carro com duas manchas roxas na perna.
então, ao catar suas bolsas teoricamente guardadas no quarto, pra deixar a festa, umas dez pessoas descobrem que foram roubadas. eu também. alguém resolve procurar na rua e começa a encontrar carteirinhas de assinante, de usuário, de membro, de identidade, cpfs e escovas de cabelo pelo chão. e minha bolsa cheia das minhas coisas e de coisas alheias. tudo lá. ou quase, o ladrão só quis 5 reau (dado que os valores minimamente cobiçáveis que cabem em bolsas ficaram dormindo em casa, recarregando baterias).
por isso venho aqui agradecer de público às forças transcendentais mancomunadas, que mais uma vez me livraram de um sufoco, como ter de refazer todos os documentos. obrigada, valeu mesmo.
(ah, e fez frio, eu pude usar meu casaco peludinho).




eu voltei.

lembrei que também tenho asas e voltei, aqui é o meu lugar.
(mas lá também é, e todo o espaço existente, um horizonte em expansão é a logomarca dos viajantes).
la donna è mobile.
quase aprendi a pilotar helicóptero, mas ainda tento pousar na copa das árvores.
vim rever meu quintal.
mas sempre que a sombra do pássaro sobrevoante passar por minha janela eu retorno pro meu aconchego no meio do nada.
as aves que aqui gorgeiam não gorgeiam como lá.
aquela ilha, isla, insula, isola, é tudo o que tenho de privado no mundo, o resto é um blog aberto.
(que às vezes fecha. definitivamente, por uma semana).
mas nada disso me importa mais. não quero explicar. não quero tomar cuidado. não quero me conhecer melhor. não quero te conhecer. não quero mudar de vida. não quero cristalizar nesta vida. tá tudo bem, a não ser quando vai mal. quero continuar transbordando. às vezes isso enche. às vezes não sobra nada. às vezes eu esqueço. às vezes eu esquento.
meu aniversário tá chegando.
inferno astral é a vontade de ter tudo ao mesmo tempo agora e já.

sexta-feira, 30 de julho de 2004

o paraíso é assim. contém um quarteirão do inferno e uma esquina da corda-bamba, a geografia do paraíso é a incerteza do dia seguinte com elevações e depressões de terreno, ai de nós que precisamos de chãos firmes.
felizes de nós que pisamos nos astros distraídos.

*



oi, coração
não dá pra falar muito não
espera passar o avião
assim que o inverno passar
eu acho que vou te buscar
aqui tá fazendo calor
deu pane no ventilador
já tem fliperama em Macau
tomei a costeira em Belém do Pará
puseram uma usina no mar
talvez fique ruim pra pescar
meu amor

no Tocantins
o chefe dos parintintins
vidrou na minha calça Lee
eu vi uns patins pra você
eu vi um Brasil na tevê
capaz de cair um toró
estou me sentindo tão só
oh, tenha dó de mim
pintou uma chance legal
um lance lá na capital
nem tem que ter ginasial
meu amor

no Tabariz
o som é que nem os Bee Gees
dancei com uma dona infeliz
que tem um tufão nos quadris
tem um japonês trás de mim
eu vou dar um pulo em Manaus
aqui tá quarenta e dois graus
o sol nunca mais vai se pôr
eu tenho saudades da nossa canção
saudades de roça e sertão
bom mesmo é ter um caminhão
meu amor

baby, bye bye
abraços na mãe e no pai
eu acho que vou desligar
as fichas já vão terminar
eu vou me mandar de trenó
pra Rua do Sol, Maceió
peguei uma doença em Ilhéus
mas já tô quase bom
em março vou pro Ceará
com a benção do meu orixá
eu acho bauxita por lá
meu amor

bye bye, Brasil
a última ficha caiu
eu penso em vocês night and day
explica que tá tudo okay
eu só ando dentro da lei
eu quero voltar, podes crer
eu vi um Brasil na tevê
peguei uma doença em Belém
agora já tá tudo bem
mas a ligação tá no fim
tem um japonês trás de mim
aquela aquarela mudou
na estrada peguei uma cor
capaz de cair um toró
estou me sentindo um jiló
eu tenho tesão é no mar
assim que o inverno passar
bateu uma saudade de ti
tô a fim de encarar um siri
com a benção de Nosso Senhor
o sol nunca mais vai se pôr

*

você conhece os Detroit Cobras? pois devia.

*
notícias do front:eu podia contar o que fiz e vi, o que aconteceu, eu podia contar tanta coisa.
mas nem é preciso.

*

alguma vez você já se sentiu no centro do universo? eu já.

*

amanhã tem que fazer muito frio porque eu quero usar meu casaco peludinho.

*

- ó sol,
tu que és tããão forte
que derrete a neve
despreeeeeende meu pezinho

*

só vou te dizer uma coisa: palavras são inúteis.
eu sinto que nem um clarão que prepara pra trovoada.
tapa os ouvidos que lá vem.

*

aquele susto no corredor.
que ótimo, descobri que sobrevivo sem respirar.

*

bye bye, Brasil
a última ficha caiu
eu penso em você night and day

*

meu periquitinho verde

*

aquela aquarela mudou
na estrada peguei uma cor
capaz de cair um toró
estou me sentindo um jiló
eu tenho tesão é no mar
assim que o inverno passar
bateu uma saudade de ti

*

tão longe, um mundo d'água pra circunavegar e as caravelas com as velas furadas.

*

uma enchente amazônica, uma explosão atlântica

*

o sol nunca mais vai se pôr

*

o leito do rio fartou-se e inundou de água doce a amargura do mar

*

é tudo tão diferente na Atlântida, o continente desaparecido.

*
mas aqui também tem homem-aranha e filmes tristes.
e ontem mesmo eu ouvi a nossa canção.
eu vim pra não morrer.
eu vi um Brasil na internet.
deu pane no ventilador.

*

baby, bye bye
eu acho que vou desligar
teve um tiroteio
tivemos que evacuar o local
prometo que vou sobreviver pra te contar os detalhes.
até a volta.

sábado, 17 de julho de 2004

estou mandando uma mensagem em código, que só você pode decifrar, porque está escrita na água. (não na superfície da água, que seria muito fácil pra qualquer um, mas lá dentro do silêncio, o deep blue frio dos segredos afundados de propósito, onde nascem cracas e corais pros mergulhadores fotografarem).
minha mensagem não diz nada. só torce pra que tudo continue assim, amplos azuis e pequenas descobertas.
 

mermaid, dulac
 
 
Parecia tão inofensivo.
Brincando com fogo, ele disse. Malabares de fogo no espaço saturado de gás.
Deixa quieto.
Não deixei, explodir é efeito colateral das experiências de dominação do mundo, como sabem todos os cientistas loucos.
 
 
burn, baby
 

não fala sobre o acontecido. quem viu já sabe, quem não viu não acredita.
a verdade é relativa, os sonhos são inúteis e teve abobrinha no almoço, mas eu não ligo.
onde você se meteu?
volta logo, volta sempre. fica até mais tarde. não vai mais embora. vem ver os passarinhos.
(eles deram rasantes, acho que pra assustar. há tantos no mundo e vão voar sobre sua cabeça vezes sem conta. talvez cagar sobre sua cabeça. não por acaso, são verdes como esperanças de olhinhos vivos e te bicam mais com os olhinhos do que com os bicos).
aquilo não foi nada, esquece. não engolirei mais sapos. juro por Tara: agora só serei leve e despreocupadamente borboleta (tirando o  perigo de um sapo me engolir).
cumpre o não-prometido direitinho, preciso acreditar em você. acredita em mim. me espera que eu estou indo logo. demora um pouco, mas eu chego a tempo.
(quer dizer, o tempo é relativo, talvez tenhamos que fabricar alguma reserva de paciência).
não faz sua história andar pra trás, não é preciso. eu estive lá, estive em todos os lugares mas agora estou aqui.
me deixa entrar por esta porta sem pedir a senha, me conta tudo sobre todas as coisas que são e foram e serão, talvez. ou não fala nada importante, deixa assim, de mordidinha em mordidinha.
sabe, eu ganhei um presente.
sabe, eu recuperei o passado, desamassei as beiradas, estendi pra secar ao sol.
sabe, eu espero o dia seguinte como criança espera o Natal.

sábado, 10 de julho de 2004

ET phone home:


olhei e ele ainda estava ali. me seguiu por um quarteirão, com aqueles olhinhos entre suplicantes e dominadores de quem sabe que a presa tá no papo, e veja que nem conseguia andar direito. acho que encontrou o que procurava.
sabe quando você sabe que vai ser inevitável? que apesar dos alarmes do Departamento de Segurança foi desencadeado um processo que só acaba quando termina? parei, me abaixei, fiz um cafuné, peguei. tão pequenininho no meu colo, se aconchegando, tremendo todo, uma bolotinha embrulhada no meu casaco.
e eu me dizendo não, agora não dá, ainda não. mas você sabe, às vezes eu falo muito baixo, e por outro lado fico surda.

*

"e vocês, que virão na crista da onda em que nos afogamos, ao falar de nossas fraquezas, pensem também no tempo sombrio a que escaparam" (Aos que vão nascer, Bertold Brecht)

*

alguém escapará?

*

te juro, segunda-feira passada conheci a bruxa do 61.

*

já te contei que sou obsessiva compulsiva capaz de corrigir, até a auto-satisfação, a curva de um olhinho fechado que aparecerá por uma fração de segundo (que beira os limites da percepção visual humana) em uma piscada de personagem duma animação de proporções reduzidas que não vai pro Anima Mundi e sim pras telinhas mal resolvidas de monitores de 14 polegadas - enfim, um trabalho inútil? e eu GOSTO disso. eu me sinto realizada fazendo uma coisa que ninguém vai reparar.
a vida é assim, as pessoas são esquisitas.

*

o egoísmo é o efeito colateral mais previsível da overdose de psicanálise, especialmente na nossa crasse mérdia.
de vez em quando, exercitar o "abrir mão em favor de" é saudável e não provoca danos à auto-estima, como temem alguns.

*

é que naquele dia eu estava sob efeito de substâncias alteradoras da personalidade, além da consciência. gás hilariante, provavelmente.

*

porque é assim, no que vc mergulha no oceano das improbabilidades vai perdendo a noção dos limites, e ao perder a noção vai se embrenhando no pântano das questões insolúveis e passa a oferecer sacrifícios semanais à Grande Lacuna.

*

tão linda a mãe natureza e seus raios que nos partem.

*

eu canto pela rua. eu rio pro sol, pra ventania, pros desconhecidos. eu saltito às sete da manhã. eu uso roupas coloridas, e de florzinha. eu choro em desenho animado. eu não acho que os humanos devam ser extintos. eu gosto de The Doors, Fernanda Abreu, Caetano e Dick Dale. eu não quero saber de orkut. eu não agüento filme trash, site trash, programa de tv trash e música trash por mais do que uma vez (animação, quadrinho e clipe tosco eu topo). eu gosto de praia e de surfe. eu assisto futebol. eu uso cinto de segurança, paro no sinal vermelho e atravesso na faixa. devo ter esperanças de que meus amigos um dia me amarão, apesar de tudo?

*

mas deixa eu te contar do Pânico. você olha e não vê, você ouve e não entende, você lê e interpreta errado, e se alguém te faz uma pergunta na lata, tipo "qual é o seu nome?", dá um branco total radiante (e não é que você não consiga falar, é que você NÃO SABE A RESPOSTA).
um estado de ET-recém-desembarcado desencadeado por situações inéditas e/ou kafkianas - nas quais ninguém te informou as instruções mas você precisa cumpri-las urgentemente - que pode durar quinze minutos, dois dias, um mês e meio. mas passa. tem que ter paciência porque passa e aos poucos você se lembra do próprio endereço ou telefone, recorda que aquele barulho é um alarme que significa "saída de carro da garagem", portanto convém prestar atenção pra não ser atropelada na calçada de novo, essas coisas.
nesses momentos de ansiedade adaptativa a boa vontade das pessoas que te cercam não tem preço. e não é pra esquecer nunca mais na vida, por isso alguns ETs mochileiros das galáxias ficam na Terra para sempre.

*

eu estaria animamundando a essas horas, mas hoje tem espetáculo, tem sim senhor.

*

me explica: pra que importar espontaneamente a aflição obrigatória dos estudantes de high schools ou universidades americanas, de provar o tempo todo que são "populares" através de números, se um deus gozador, que adora brincadeira, pra te botar no mundo tinha o mundo inteiro, mas achou muito engraçado etcetcetc e você pode ter amizades verdadeiras que se medem pela qualidade?
(upigreidando, era mais ou menos isto o que eu queria dizer).

*

mas falando em celebridades, conheci recentemente duas do meu acervo de admiráveis, uma na área musical outra na área quadrinhal. que me parecem pessoas muito legais, como esperava. pra um eu já pedi autógrafo (pra vender daqui a três anos por milhões de dólares, euros ou trocar por petróleo, ações de empresas de telecomunicações ou água potável). pro outro, pedirei quando for a um show, pra dobrar meu patrimônio. porque se um dia houver justiça neste mundo eles serão famosos por méritos próprios, receberão as flores (e a grana a que terão direito) em vida e poderão condicionar sua participação num evento das Organizações Globo ao cancelamento do apoio global à candidatura do Bispo Crivella à presidência.

*

cara, e pelo jeito, mais uma vez eu vou ter que votar no Qualquer Um da Silva pra tentar barrar o Crivella no segundo turno. qq 1 que provavelmente será o Cesar Maia, quem diria. e no primeiro turno, por falta de melhor opção, vou de Jandira mesmo.
que saco, sempre a mesma coisa. faz um tempão que não voto em quem acredito, aqui no Rio.
mas anular eu acho pior, os eleitores dessas catástrofes jamais anulam os seus vales-dentadura.

sábado, 3 de julho de 2004

um novo mundo se descortina para mim.
você sabia que não é permitido transitar com cavalos, burros e jumentos pela passarela do metrô?
eu nem desconfiava.


nunca tinha reparado na quantidade de gente que senta num boteco pra beber às oito da manhã.


aliás, nunca tinha reparado como há festa de rua no fim de semana, em todas as ruas.
basta uma churrasqueira, o boteco ou tendinha nas proximidades, o som na caixa (que pode ser toca-discos portátil da década de 60, rádio de carro, sonzaço semiprofissa de caixonas ribombantes ou caraoquê for), trabalhadores e desocupados a fim de exorcizar preocupações ou simplesmente cumprir o ritual de diversão do calendário e tá formado o evento.
eu sei que não é novidade, o que me espanta é a generalização de um hábito que eu pensava ser mais localizado.


pipas. como um pequeno trecho de céu pode conter tantas pipas?


e como o som que nos embala diariamente pode variar dos periquitos e maritacas sobrevoantes ao das rajadas de balas avoejantes e tudo parecer tão normal.


acho que tem uma borboleta rondando a rede onde minha atenção dormia em sono profundo.


de vez em quando eu sonho com pixels ampliados 1600 vezes ou olhinhos piscando.


minha realização absoluta vai ser quando conseguir pegar o taco de sinuca por trás do corpo, meio "debruçada de costas" sobre a mesa, naquelas jogadas com a mão esquerda. eu acho o máximo da pose sinucal, combinando com as típicas luminárias pendentes.
um dia eu chego lá.


vejo céus de azul intenso, nuvens cor-de-rosa, sóis e luas deslumbrantes no meio duma paisagem que não diria bucólica, mas que me é cada vez mais querida.


e falando em periquitos: este som me acompanha onde quer que eu vá.


Foto: Fábio Pili (www.brasiloeste.com.br) - 'Filha de uma típica família ribeirinha do rio das Mortes, menina brinca com seu periquito de estimação'.


noutro dia tinha um cara vomitando no ônibus-integração do metrô, sentado no degrau do corredor de passagem, ainda no ponto final/inicial. parecia bebum, mas não se pode afirmar sem provas. de vez em quando ele deitava no chão, ou apoiava a cabeça na perna do passageiro sentado na cadeira ao lado do degrau. e fazia aqueles barulhos ameaçadores que você sabe, e todo mundo se encolhia quando não podia se afastar mais da área perigosa.
o trocador tentou inútil e amavelmente convencê-lo a descer antes do ônibus começar a andar, mas no que ele disconcordou eu teria insistido com mais vontade. foi uma pequena grande viagem de um ponto de distância, mas nesta vida o que não se pode é reclamar de tédio.


êêêêba!!! já tenho a minha camiseta dos malvados!


não tinha reparado na quantidade de roupas que eu tenho. incluindo meu próprio brechó de coisas raras do século passado. o que posso responder quando me perguntam onde foi que eu comprei aquela blusa? que sempre existiu?


a Hannah não gosta de gato félix, e deu gritos de horror ao ver 4 gatos félixes juntos pintados de kiss naquela outra camiseta. (mas eu perdôo porque adoro mais a Hannah que a camiseta).


estou com saudades da turba ignara e do Arpoador. I'll be back. brevemente numa calçada perto de você.


os censores da ditadura militar eram tão burros quanto os programas de computador que bloqueiam sites a partir de palavras "condenadas".
censurar um cantor brega por usar algo como "você tortura minha alma" na letra foi mais que simples imbecilidade, foi um primarismo de programação.


quando vejo um pequeno poodle latindo histericamente prum pitbull, rottweiler, doberman ou semelhante, que passa indiferente às provocações pensando na própria vida, entendo perfeitamente o que acontece no mundo dos humanos, você não?


a melhor avaliação do Marlon Brando que eu vi nesses dias de homenagens póstumas foi a do Nelson, disparada.


estou achando tudo bom, até aquela comida suspeita.
(mas pra ser bem sincera, meu sistema digestivo não aprecia muito esta recaída no populismo alimentar, que fere seus princípios naturebas e/ou aristocráticos).


now the dark days are gone, and the bright days are here,
my sunny one shines so sincere


abandoned-places

abandoned places

domingo, 27 de junho de 2004

frases da semana:

O problema é que o Fulano tem duas mãos esquerdas. E ele é destro.
(Luciano)

- o Zé tem TOC (transtorno obsessivo compulsivo), tem mania de lavar as mãos toda hora.
- mas sabe a quem ele puxou?
- a Pôncio Pilatos.
(Paulinho)

Sexta à noite, Alice no bar chama a garçonete:
- moça, por favor.
- pois não.
- quem matou Lineu?
- ah, foi a Laura, o segurança acabou de me contar.
- brigada.
- nada. mais dois chopes?





aquela noite

acabei de me deitar e ouvi os gritos lá longe. não era comemoração de jogo. o som numa cadência, pareciam palavras de ordem numa passeata de protesto, seriam os camelôs? mas àquela hora, mais de meia-noite? afinal eu moro onde tudo é possível, Copacabana princesinha do maremoto. mais provável seria uma manifestação daquelas do tráfico, de incendiar os carros pelo caminho. mas essas não costumam ter palavras de ordem (e nem mesmo de desordem) repetidas disciplinadamente pela multidão. bem, o som se aproximava, talvez desse pra entender alguma coisa.
- Brizola/ guerreiro/ do povo brasileiro!
entendi.
liguei a TV e pela primeira vez vi os repórteres da Globo elogiando os Cieps, o Sambódromo, o nacionalismo, a coragem, a coerência, a determinação da liderança popular capaz de atrasar um golpe militar por três anos só com a mobilização do povo pela rádio montada nos porões do Piratini, sede do governo estadual gaúcho, em 61. lembrei do Allende, bombardeado em circunstâncias parecidas. lembrei da revolução que não houve e das nossas baixas reais, lembrei de coisa pra caramba. de como a vaidade pessoal pode embaçar a clareza da visão política, de como é difícil ceder espaço e confiar nos outros, reconhecer a hora de agir como a locomotiva e a hora de ser escada, é tão difícil sair do papel principal e continuar no palco. lembrei da Ópera do Malandro e de como a Lucinha Lins tá cantando inacreditavelmente bem, à altura de todo o elenco perfeito.
lembrei de uma infância de desbravadora bandeirante dos cerrados, dos sonhos de progresso inexorável dos anos 60, do futuro escrito nas estrelas, dos foguetes e naves espaciais, das onças que a gente queria caçar no Paranoá, das palavras gravadas na parede dourada do palácio em construção que tinha telefone na banheira: deste planalto central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada com fé inquebrantável e confiança sem limites no seu grande destino, Brasília capital da esperança, do barro vermelho, da politicagem, do b-rock e do tédio infinito.
lembrei daquela outra atriz contando o quanto lhe custou desencarnar do personagem que foi seu ídolo na vida real, tão melhor que ela; lembrei daquele filme, da estrada no escuro, dos faróis azuis iluminando a praia e do meu coração subindo até a garganta; lembrei de ter sido tão livre; lembrei de ter sido tão boba; lembrei da Sereiazinha perdendo sua voz e dançando sobre facas por escolha própria e virando espuma no fim; lembrei de quantas vezes paguei pra ver, com mais que a voz ou uma cauda de peixe, paguei e não vi mais do que o pouco que existia, mas não virei espuma; lembrei de um remoto ano nebuloso de solidão e auto-engano, da vontade tornada impulso imperioso e destino inescapável, e do risco de entregar o que tinha de melhor em mãos despreparadas e desatentas; lembrei do desprezo que toda covardia me provoca, da promessa de cuidar melhor das pérolas e da quebra de todas as promessas; lembrei da perda de confiança em todos os futuros possíveis, e do quanto custa reorganizar a vida depois de desmontada pedrinha por pedrinha; lembrei que sempre se consegue reorganizar a vida por pior que pareça; lembrei da sorte, da estrela, do inexplicável que põe no caminho o que é preciso e nem adianta fechar os olhos porque a gente tropeça.
notei que minha vida já recomeçou do ponto onde parou, sem áreas proibidas, sem auto-censura, sem muletas, sem alarmes, sem a vulnerabilidade extrema às maldades do mundo cruel. de repente percebi o fim do intervalo de readaptação, das defesas exageradas e do medo de fraquejar. o fim do medo de passar de novo pelos problemas inevitáveis. lembrei do quanto é ridícula a ilusão de evitar problemas. lembrei do Henfil, do Wolinski e dos Malvados.
já posso voltar.
ou melhor, faz tempo que voltei, pra essa ilha de doçura e paz insuspeitadas no meio da agitação dos prazos curtos, das balas que tentam achar, da vida nômade de sem-tela-própria, dos monitores solares e programas desconhecidos, das linguiças envenenadas, do metrô que escapa da trilha e dos ônibus que fogem do ponto.






tu precisava ouvir os greatest hits arqueológicos da Secretária Telefrônica.


diz que eu não sou de respeito
diz que não dá jeito
de jeito nenhum
diz que eu sou subversivo
um elemento ativo
feroz, nocivo
ao bem-estar comum

fale do nosso barraco
diga que é um buraco
que nem queiram ver
diga que o meu samba é fraco
e que eu não largo o taco
nem pra conversar com você

mas fica
mas fica ao lado meu

você sai e não explica
onde vai e a gente fica
sem saber se vai voltar

diga ao primeiro que passa
que eu sou da cachaça
mais do que do amor
diga e diga de pirraça
de raiva ou de graça
no meio da praça, é favor

mas fica
mas fica ao lado meu

você sai e não explica
onde vai e a gente fica
sem saber se vai voltar

diz que eu ganho até folgado
mas perco no dado
e não lhe dou vintém
diz que é pra tomar cuidado
sou um desajustado
e o que bem lhe agrada, meu bem

mas fica
mas fica, meu amor
quem sabe um dia
por descuido ou poesia
você goste de ficar

isquindum, isquindum
isquindum, isquindum








preparem seus corações, seus bolsos, seu estoque de tempo: o animamundi vem aí.

quinta-feira, 17 de junho de 2004

a gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar
mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá

acho improvável voltar tão cedo.
digamos que o blog exigiu férias e não pude negar.
foi bom estar com vocês, foi bom brincar com vocês.
valeu mesmo. saudades terei, padawan.
beijos múltiplos, coletivos, indistintos e simultâneos porque virtuais, e até qualquer dia, talvez, quem sabe.

segunda-feira, 31 de maio de 2004

acho que vou ficar morando aqui por uns tempos.
"aqui", no caso, são vários lugares próximos, isolados uns dos outros (considerando que é um arquipélago) embora comunicáveis entre si por meio de mensagens enviadas em garrafas, ou levadas por gaivotas-correio e golfinhos treinados, ou de carona em botes de pescaria cavados em troncos de árvore, em pranchas de surfe e, caso da ilha mais inóspita e desprovida de civilidades, pelos sinais de fumaça do vulcão. o celular não funciona, porque Aqui é fora de todas as áreas.
os lugares são culturalmente variados e alguns têm energia elétrica, telefone, big mac e internet, outros não. nossa ilha não. então vivemos em constante deslocamento, porque onde há internet pode não haver peixe, onde há peixe pode ser que não haja água potável.
mas a estrada é o oceano, então abrimos uma clareira para o pouso do helicóptero (atenção: nenhuma planta sofreu danos ou maus tratos para a realização deste filme) e o atalho é pelo ar.
aqui chove. é a terra do sol, mas chove. e faz frio. e tem granizo, geada, ciclone extratropical, raios e trovões, névoa pela manhã e à tarde. mas quando chega o sol, é aquela coisa. paisagens absurdas. é quase tão lindo quanto o Arpoador.
aqui é um lugar protegido, onde a gente pode viver longe dos problemas normais, arranjando problemas nunca dantes cogitados.
acho que estou feliz.
mas um dia eu volto.
enquanto isso aparecerei quando puder, porque se não puder nem adianta querer.
de vez em quando deixarei minha rotina de escrever e ilustrar livro, preparar risotos de frutos do mar e dar aulas para crianças vizinhas, e virei até o outro lado do horizonte procurar por notícias. talvez dando voltas numa bicicleta com acesso à internet emprestada, pra economizar meus dobrões de ouro encontrados no navio naufragado. lerei os e-mails, os jornais e revistas, os blogs, saberei o que ando perdendo e do que estou escapando por estar tão longe. sentirei saudades e alívios, tomarei um drink no abacaxi, esboçarei mais um desenho do povoado e seus habitantes, conversarei no mercado, chamarei Flipper com um assovio e partirei de volta para a minha ilha, sonhando talvez com o mundo perdido, ou tendo pesadelos roteirizados por Stephen King, influenciada pelas leituras internéticas. no fim da tarde dourada reconhecerei o ronco do nosso helicóptero chegando (mesmo porque é o único helicóptero das amplas redondezas), correrei saltitante para o portão, e o resto não interessa a mais ninguém.
se eu soubesse, teria mesmo feito biologia marinha.

sexta-feira, 28 de maio de 2004

tchau, tou indo lá perder o Rock in Rio 4 com Sir Paul McCartney na abertura.
§.... coisas bregas que me fazem feliz ....§

são tantas. mas algumas nem me despertam o desejo de posse, basta olhar cada vez que uma oportunidade aparece. sabe aqueles cubos ou paralelepípedos de acrílico, com uma "esculturinha" virtual dentro? uma imagem gravada em 3 dimensões, tão delicadinha, eu vejo um por um dos chaveiros, ou pesos de papel, ou o que tiverem feito dos acrílicos com o mesmo espanto renovado e repetido.
ah, e adoro uma coisa transparente qualquer com luz atravessada se desprismando em mil arco-íris na parede (como um brilhante que partindo a luz explode em sete cores, mas convenhamos, tem aí um toque hans donner complementando jobim).
e gosto de plásticos em geral. coisas de plástico de cores fortes, em particular. prateleiras de lojas com muitos plásticos de cores diversas. nunca serei neutrinha no assunto de cores. mas não que me vista, ou arrume a minha casa como num carnaval tabajara, apenas gosto de conviver com certos comprimentos de luz no meio do negrume ou da branquidão, ou das outras cores-fundo.
e tem também as coisas que brilham, piscam, refletem, silhuetam, translucidam. de lavalamps a luzinhas de árvore de natal, passando por vidros de todas as espécies, transparentes, jateados (mas sem desenhinhos, que também é demais), canelados, molhados de chuva. coisas aparecendo por trás de vidros, coisas sutilmente sugeridas, silhuetas, reflexos deformados.
(importante observação: lavalamps, não aquelas imitando foguetinhos, mas as antigas grandonas que pareciam colunas de vidro, com muitas bolhas. e luzinhas de árvore de natal na própria árvore, porque aqueles arranjos natalinos "teia de aranha" improvisados nas portas e jardins dos prédios até acabam com a idéia positiva de breguice).
falando nisso eu nunca tive uma arvorinha de natal de fibra ótica, que acende na ponta e muda de cor. nem terei. mas gosto de ficar vendo aquilo.
e sempre tive caleidoscópios. não que ache brega, só está aqui no post porque me lembrei do primeiro caleidoscópio que se quebrou na minha frente, e o encantamento estupefaciante que me acometeu vendo aqueles pedacinhos de vidro ou plástico colorido, lantejoulas, fechos de gancho de metal, vidrilhos, botões, foi inesquecível. como aquilo tão comum podia se transformar nas imagens mais fantásticas do mundo? gênio, o inventor do caleidoscópio.
sei que a noite inteira eu vou cantar
até segunda-feira, quando volto a trabalhar
sei que não preciso me inquietar
até segundo aviso você prometeu me amar
você deve ter visto no jornal: há alguns dias atrás o líder espiritual indiano Sri Sri Ravi Shankar esteve na Rocinha, "ensinando técnicas de relaxamento aos moradores", pra combater aquele clima violento. (esta era a chamada das notícias globais, é claro que foi muito mais que isso.)
à parte as louváveis intenções, me lembrou aquela piada do recente paciente de psicanálise e fiquei imaginando o povo rocinhense atravessando o fogo cruzado todo fim de tarde pra chegar em casa, mas agora tranqüilo, tranqüilo.

quinta-feira, 27 de maio de 2004

foto Márcia Foletto, O Globo, vista do Mirante do Leblon  foto Márcia Foletto, O Globo, praia do Leblon

foto Márcia Foletto, O Globo, praia de São Conrado  foto Márcia Foletto, O Globo, praia de Ipanema

fora isto, tudo igual.
inventário: poucos bens, alguns tesouros. não vou falar da família porque pareceria discurso obrigatório clichezístico formal, o que seria (o parecer) uma injustiça com a sinceridade dos meus sentimentos. são todos mais que tesouros, são de onde eu chupo, sugo, extraio minhas forças, o melhor da minha vida, aquilo tudo o que qualquer um também diria de sua família se ela fosse como a minha (e não estaria errado em exagerar um pouquinho).
fora isso, tenho amigos, ou acho que tenho e me contento com a possibilidade de partilhar espaços, pensamentos, cervejinha, carinho, besteirol e visões de mundo com grandes, raros e incríveis seres que habitam nosso pobre (de espírito também) planeta, que eles ajudam a tornar mais suportável. ou mais complicado, dependendo da ocasião.
e tenho uma casa e um bairro - aqui pertinho um oceano inteiro - e uma cidade onde gostaria de morar eternamente enquanto não explodirem, coisa que pode estar perto de acontecer. e em toda parte tenho a porta aberta pro mundo quando der na telha (embora não possua grana que possibilite a realização de grandes sonhos viajantes no momento, mas quem sabe um dia).
tenho saúde (pelo menos física), disposição (pelo menos em certas horas do dia e certos dias da semana), a capacidade de trabalhar e o gosto pelo que sei fazer (também neste assunto, nem sempre a oportunidade de exercer meus, digamos, talentos de modo conveniente e justamente remunerado - mas às vezes um danoninho vale por um churrasco de boi inteiro).
tenho um certo entusiasmo pululante - que em épocas de inverno emocional se faz de morto mas é só dar um assovio que ele desperta (bem, às vezes tem que ir lá pegar à força, mas sabemos que ele existe, mesmo que seja no modo avestruz).
e tenho um raríssimo exemplar, talvez único, de Pinguim Avuador Gigante de Olho Azul do Extremíssimo Sul, oculto a sete chaves virtuais num ponto qualquer da Terra que às vezes até eu mesma não acho, mas que me aparece ao vivo e some de repente como pluft o fantasminha, pra manter a ilusão de sua existência real. ou me leva nos seus vôos de pinguim (seriam sonhos?) pruns lugares que vou te contar, ninguém acredita: no espaço sideral.
tenho saudades. grandes, imensas, abrangentes, do que vivi e do que não vivi, do que conheci e do que não conheci, do que passou e do que ainda não veio, do que mudou e do que ainda espero que mude, do que não era bem como eu pensava e do que foi melhor do que eu podia imaginar, de tudo que já existiu e do que simplesmente não existe nem existirá. não deixo por menos.
tenho saudades (ou que outro nome tenha este buraco do que falta) porque tenho sonhos, muitos, o tempo todo, e alguns eu realizo, outros não, como todo mundo. (talvez eu tenha mais sonhos infantis irrealizáveis que a média das pessoas, mas tudo bem, ainda não pude fazer nada quanto a isso, e até que tenho tentado, com a inestimável ajuda dos assistentes do dr. Freud).
então eu me viro com o que tenho, meus cantinhos, meus amores, meus pavores, minha história, minhas memórias, meus planos, meus desejos impossíveis e meus furos, frustrações e adiamentos (tudo meu, tudo meu!), mas sabe, hoje isto não me parece tão ruim. (aliás, hoje nada me parece ruim, e olha que não ingeri nada estranho, dieta normal).
e sim, me faltam algumas coisas que eu diria fundamentais - mas no momento falo do que possuo. (o que não me impediria de incluir as lacunas como pertences, não é? buracos rotulados. só pra não deixar nada de fora).
este inventário é pra me ajudar a perceber que tenho muito o que perder. tenho que cuidar do futuro, do presente e até do passado (pra não desmanchar o castelo tirando uma pedra olê olê olá, assim de bobeira). tenho que prestar mais atenção no que tenho, tou rica, tenho que parar de viver semanas-não só porque não são completas, tenho que espremer o suquinho de pedra de cada dia e correr atrás das mudanças e alegrias possíveis. (ai que cansaço. ser feliz dá muito trabalho).
mas tem uma coisa: deixar herança, acho que não vai dar não. tenho a impressão de que vou torrar tudo antes de morrer.
desorientação:
o filme é argentino. pensei que fosse espanhol, e continuei pensando durante um tempão. acho que andei bem ali por por aquelas ruas, mas se não me engano era Madri. ou melhor, me engano sim.
faz tempo que não reparo por onde ando.
olha, eu sei o que você pensa sobre Fidel Castro, ditaduras & democracias, paranóias e teorias da conspiração, tudo isso.
mas leia sem bloqueios, lembre-se de quem é Bush e seus esforços pra salvar o mundo do Eixo do Mal e pense por sua própria cabeça (o que é um conselho redundantemente inútil, eu sei que você faz isto sempre).
é meio grandinho, não é imparcial, mas acho que é interessante e vale a pena.
(tive que reproduzir tudo porque é pop-up e da semana passada, não sei como se linka isso)

A "próxima vítima" reage

Pressionada por Bush, Cuba vai às ruas e adota uma saída oposta à do neoliberalismo. Mesmo na crise, emprego, saúde e escola para todos.

RITA FREIRE
Havana

As ruas tomadas de Havana, no dia 13 de maio, intrigaram quem quer que observasse as imagens da multidão transmitidas no mundo todo. Apenas quatro dias depois de um pacote econômico indigesto, um chamado do governo de Fidel Castro foi atendido por um milhão de pessoas que saíram às ruas para defender o regime cubano. Mais uma vez, a defesa do país e sua dignidade se contrapunha a um "plano de redemocratização" draconiano anunciado pelos Estados Unidos.

Apostando que o orgulho ferido dos norte-americanos com o fracasso no Iraque poderá ser saciado com uma investida vitoriosa contra Cuba, Bush introduziu novas cartas no jogo eleitoral. Num plano divulgado dia 6 de maio, promete levar o regime de Fidel Castro à asfixia, cortando o fluxo de dólares que imigrantes cubanos nos EUA enviam às suas famílias e dificultando viagens à Cuba. Quer criar meios de punir empresários, inclusive de outros países, que fazem negócios com a ilha.

O primeiro alvo são os 1,3 milhões de imigrantes cubanos residentes nos EUA e que mantêm laços familiares, afetivos e solidários com Cuba. Deles vai uma parte importante da renda dos parentes que ficaram na ilha. Por ano, cada um pode mandar US$ 1,2 mil. Em tese. A partir de junho, quando as medidas entrarão em vigor, essa ajuda não poderá ser enviada a famílias ligadas ao Partido Comunista, nem a parentes de segundo grau, o que deve afetar a maioria dos casos. Levar dinheiro pessoalmente será impossível. Viagens a Cuba só poderão ser feitas a cada 3 anos, com o limite máximo de U$ 50 dólares para cada dia de permanência.

Ao mesmo tempo, o plano mira os cubanos da ilha. Bush pretende desnortear corações e mentes com a mesma máquina de guerra usada para manter a adesão amedrontada dos norte-americanos: a propaganda maciça e controlada pela Casa Branca. Neste caso, terão voz os contra-revolucionários de Miami, acusados de uma seqüência de atos terroristas contra Cuba.

Para isso, o plano requer o "deslocamento imediato" de aviões "C-130 Comando Solo" para criar plataforma que permita as transmissões da Rádio e Televisão Marti. São emissoras baseadas nos Estados Unidos e dirigidas a Cuba, hoje barradas por interferência cubana.


Pretexto para armas

Transtornar as relações entre cubanos e emigrados parece ter objetivos mais militares do que econômicos. Cuba já está cercada. A Leste, Guantánamo e o Haiti sob golpe de Estado. Ao Sul, os militares do Plano Colômbia.

Pretexto para invadir - possibilidade que preocupa também a Venezuela -, não há. Mas para os cubanos, o estopim acaba de ser montado. A asfixia econômica, a separação de famílias, a busca desesperada de melhores condições de vida, podem ter o mesmo efeito da crise dos anos noventa que reduziu, nos primeiros três anos, o PIB da ilha em quase 35% e provocou, em 1994, o famoso êxodo de balseiros de agosto de 1994. A lei Helms-Burton permite aos EUA, desde 1996, interpretar uma nova onda de imigrantes como um ato de guerra e motivo para uma resposta militar.

O ministro Perez Roque acusa Bush de forçar a crise migratória, aumentando a pressão até que exploda. A intenção por trás do plano é apontada também por cubanos de oposição à Fidel. Eloy Gutiérrez Menoyo, dissidente que está de volta à Cuba, interpreta o gesto de Bush "como praticamente uma incitação ao conflito armado". De modo geral, o relatório de Noriega foi mal visto por todos os grupos de oposição considerados não extremistas e formados no exílio, como Cambio Cubano, Arco Progressista e Projeto Varela.


Nunca em Cuba

O governo cubano reagiu ao plano de Bush com esforços diplomáticos em busca de apoio internacional (na ONU, OMC, OMS e relações bilaterais). Também adotou medidas duras dentro de casa. Elas beiram o racionamento de guerra. Ainda assim, obteve o apoio de uma das maiores mobilizações jamais vistas. A dimensão é maior se considerado que o ato restringiu-se à Capital, Havana, e foi convocado na véspera. A maré de protestos invadiu a avenida à beira-mar do Malecón, em frente à Oficina de Interesses dos Estados Unidos em Havana (em Cuba não existe embaixada norte-americana).

O sentimento cubano foi traduzido em cartazes com a foto ampliada da militar norte-americana que arrastava pela coleira um prisioneiro iraquiano. Sob ela, frase sintética: "Em Cuba, jamais acontecerá". Agudo como sempre, Fidel sinalizou aos cubanos que os dias vindouros serão terríveis. Disse a Bush que a resistência será feroz.

Considerando que o presidente norte-americano está disposto a decretar a morte da revolução cubana, Fidel não fez por menos: "Salve, César. Aqueles que vão morrer te saúdam", ousou o presidente cubano, recorrendo à famosa frase dos gladiadores ao imperador romano.

O calor de Havana indica que a população pode estar disposta a enfrentar a fome e andar descalça para suportar a radicalização do embargo econômico. Curvar-se está fora de questão. "Este povo pode ser exterminado, varrido da face da terra, mas jamais subjugado nem humilhado", avisou Fidel.


Pesadelo anunciado

As cenas de rua das vésperas do protesto de Havana não deixavam prever o espetáculo do dia 13. A mesma população altiva contra Bush podia ser vista correndo aflita às lojas que vendem produtos em dólares, para tentar estocar alimentos e produtos de higiene importados, os poucos itens permitidos pelo governo até um ajuste geral de preços que tornará a vida na ilha ainda mais difícil.

Enquanto procura induzir a população a investir o que tem em comida, o pacote de Fidel limita dramaticamente a possibilidade de consumo de outros gêneros quase igualmente importantes. Para uma população que usa as TRD - Rede de Lojas Recuperadoras de Divisas que se baseiam na moeda norte-americana - para compra de roupas, sapatos ou produtos para casa, as medidas não poderiam ser mais impopulares. Os preços dos combustíveis também voltaram a ser proibitivos para boa parte dos cubanos.

A gravidade do momento é indicada à população pelo fato de o pacote de 15 medidas não ser formalmente atribuído ao governo nem ao Partido Comunista, mas sim à "Revolução, apoiada em sua longa experiência, sua equanimidade e na sólida unidade e elevada cultura política de seu povo". Esse recurso só é utilizado em Cuba quando o regime é ameaçado e requer coesão nacional contra a ameaça. "Neste instante, a esfera política alcança sua máxima importância", diz nota oficial.

A população prepara seu espírito para a possibilidade de sobreviver na pobreza aguda. Mas o que Cuba chama de essencial - e que será garantido - desafia a lógica segundo a qual desemprego e a redução de gastos sociais são males inevitáveis em tempos de crise econômica.

A "ração de guerra" estabelecida por Cuba utiliza o avesso da receita neoliberal: é composta de políticas para manter os níveis de emprego mais altos do mundo (97,5%), educação e saúde pública para todos, acesso aos alimentos básicos a preços abaixo do custo. A produção cultural também será protegida. São bens e serviços que, "sem privilégios de nenhuma índole, devem ser recebidos por toda a população do país", como frisa a nota oficial. Qualquer coisa fora isso - incluindo vestuário, bebidas, acesso à internet e combustível - terá peso de ouro até que a crise seja superada.


Alvo fácil?

O fantasma que assombra Cuba está contido em 450 páginas, organizadas em seis capítulos por Roger Noriega, sub-secretário de Estado para assuntos da América Latina e representante dos contra-revolucionários cubanos no governo Bush. O conjunto da obra leva o nome de ?Relatório da Comissão de Ajuda a uma Cuba Livre? e prevê a ingerência radical dos EUA para forçar uma "transição democrática" do regime cubano.

"Fácil de atacar, perfeita para a valentia estilo Texas", define o lingüista norte-americano Noam Chomsky ao explicar, ao jornal mexicano La Jornada, por que Cuba foi escolhida para aplacar o descontentamento norte-americano. Reinventar um inimigo - à moda de Reagan - parece ao governo o melhor remédio para manter a adesão do "povo [o norte-americano] mais assustado do mundo", na opinião de Chomsky.

O relatório não poupa os norte-americanos de novas mentiras para justificar uma intromissão na vida cubana. Bush promete vacinar todas as criancinhas cubanas logo após a vitória, uma ofensa para o país onde não faltam remédios e que tem índices de mortalidade infantil menores do que os EUA.

(Publicado em Porto Alegre 2003: 20/05/2004)