domingo, 17 de abril de 2005

agora eu sei que as palavras impronunciáveis escorrem pelo nariz e, uma vez na luz do mundo, cobrem as cidades com seus trovões em decibéis assustadores.
não, não era isso o que eu queria dizer.
só queria dizer que acordo impressionada com o enorme barulho do desconhecido que ruge lá de dentro, o boi cruel da cara preta que arranca braços de criancinhas e come maltrapilhos acuados em becos.
também não ia dizer isso, mas já que disse não vou explicar melhor.
eles não querem nada mais que um pouco de esperança, e escavucam chãos e paredes, arrancam tacos, incendeiam o mato em volta da casa, levitam sobre a vila com uma lupa e tudo o que encontram são escombros do que destróem todos os dias, malditos esperançosos.
e eu, que só digo o que não quero, faria melhor se fosse até a praia pegar umas ondas.



Docebel correndo pela rua imaginando campos de margaridas, aspirando vapor de gasolina do posto e sorrindo feliz pro sol das duas da tarde, os pezinhos colando no asfalto derretido.
Docebel é idiota de nascença.



já lhe disse que tenho o direito de usar meus superpoderes para eliminar alguns incômodos da minha vida. e uso, mas com moderação.
quando meu horóscopo recomenda: "hoje é dia de cianureto no cafezinho das visitas inoportunas", eu ponho uma vassoura atrás da porta e invento uma desculpa amável e claramente esfarrapada pra sair rapidinho.



é o seu jeito de professor, é a sua falta de jeito pra todo o resto, acho que são os olhos que não piscam, presos num ponto do ar. é o clarão da estrela no fundo do poço, é a surpresa armada no alto da árvore, é a chuva de sustos em pétalas e os carinhos amarrados como lenços saindo da cartola, a viagem sem fim.
meu bem-querer.

domingo, 10 de abril de 2005

tem um sagüizinho de rabo listrado morando na mangueira aqui embaixo da janela.
ele pia como quem manda beijos, como piam os morcegos, como piam altíssimo os filhotes de passarinho em suas fomes insaciáveis.
só ontem lembrei que morcegos não se manifestam de dia e, procurando um ninho, achei um rabo e depois uma cara pequena e familiar, de parente distante, me olhando de longe.
ele pia e abre janelas entre as folhas da mangueira.
eu também lhe mandei beijos, e ficamos assim trocando mensagens amorosas por um longo tempo:
"como vão todos?" "bem, as crianças cresceram e se enfiaram nos buracos do mundo" "encontrei um primo seu faz tempo, na Gávea, pegando frutas no quintal da Escola Parque" "aquele morreu no fim do ano, de pedrada, e foi parar numa panela" "ah, esta cidade e seus famintos sem sentimentos solidários para com outras espécies em extinção..."
mas tive que abandonar a conversa porque chegou a hora de viajar. não houve tempo de lhe dar conselhos, o que por um lado sempre é ótimo, mas por outro, sei lá, eu lhe teria avisado para não aceitar sobras de comida humana, fast food, batata frita redonda e ovinhos de amendoim.