terça-feira, 7 de setembro de 2004

histórias de surfistas

naquelas ameaças uma última chance: se você sentisse minha falta eu não iria embora, me pede pra ficar. se você dissesse qualquer coisa, se ao menos falasse comigo, ou olhasse daquele jeito, se fizesse um gesto na minha direção, qualquer coisa mínima que eu pudesse interpretar como interesse, se quisesse saber por que estou morrendo. me pede pra viver.
mas ninguém pede, mesmo querendo, e o cara entrou no mar, só entrou, entrou, e foi morar lá dentro livre de todas as dúvidas.


aqui deitada na areia o céu lá embaixo, lá embaixo, no fim do abismo, eu nunca saltei da pedra antes, não sei o que faria se uma onda se levantasse do céu como uma boca de tubarão, se estivesse sem prancha como estou agora, eu não me sinto muito bem nas alturas, eu sempre sonho com a onda gigante que arrasa a cidade e derruba os prédios e só me salvo porque estou por cima da crista como num cavalo, eu tenho pouco fôlego e já quase me afoguei mas disse que foi um desmaio, na verdade eu tenho medo do mar e da solidão que é ter que lutar pela vida fora da minha prancha.


se não fosse isto, esta transparência, a rede de elos de sol sobre meus pés no fundo, este gosto de limpeza (sabe, eu bebo um gole d'água do mar desde pequena no fim de cada mergulho, pra me purificar por dentro) e as bolhas brilhando com a luz da superfície, se não fosse isto ainda assim eu voltava todo dia só pra ver as manobras, as gaivotas flechando certinho seus alvos no meio das pranchas, será que nunca ninguém foi atingido na cabeça?
eu voltava pra ver como ele cresce todo dia e fica maior ali, meu filho que nasceu tão longe do mar e das habilidades motoras, que só aprendeu a andar aos três anos porque encontrou seu elemento, areia, sal, prancha e gaivotas.


ele não morre. atravessei o oceano e o que vejo do alto do Montjuïc? o mar, ele lá do outro lado sobre a pedra do Arpoador me desejando um feliz natal.
o que vejo onde quer que vá? o mar, senão ao vivo pelo menos em imagens, e ele deslizando sobre alguma onda, mesmo imperfeita, antes do café da manhã. aliás ele nem tomava café, tomava suco de tangerina ou abacaxi com cenoura.
levo sempre uma onda na frente dos olhos assim levemente translúcida, às vezes verde, às vezes turquesa, às vezes cinza chumbo. faz algum tempo que não volto ao Arpoador. ele morreu atropelado, atravessando o trânsito da Vieira Souto como se estivesse desviando de peixes.

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