quinta-feira, 27 de maio de 2004

olha, eu sei o que você pensa sobre Fidel Castro, ditaduras & democracias, paranóias e teorias da conspiração, tudo isso.
mas leia sem bloqueios, lembre-se de quem é Bush e seus esforços pra salvar o mundo do Eixo do Mal e pense por sua própria cabeça (o que é um conselho redundantemente inútil, eu sei que você faz isto sempre).
é meio grandinho, não é imparcial, mas acho que é interessante e vale a pena.
(tive que reproduzir tudo porque é pop-up e da semana passada, não sei como se linka isso)

A "próxima vítima" reage

Pressionada por Bush, Cuba vai às ruas e adota uma saída oposta à do neoliberalismo. Mesmo na crise, emprego, saúde e escola para todos.

RITA FREIRE
Havana

As ruas tomadas de Havana, no dia 13 de maio, intrigaram quem quer que observasse as imagens da multidão transmitidas no mundo todo. Apenas quatro dias depois de um pacote econômico indigesto, um chamado do governo de Fidel Castro foi atendido por um milhão de pessoas que saíram às ruas para defender o regime cubano. Mais uma vez, a defesa do país e sua dignidade se contrapunha a um "plano de redemocratização" draconiano anunciado pelos Estados Unidos.

Apostando que o orgulho ferido dos norte-americanos com o fracasso no Iraque poderá ser saciado com uma investida vitoriosa contra Cuba, Bush introduziu novas cartas no jogo eleitoral. Num plano divulgado dia 6 de maio, promete levar o regime de Fidel Castro à asfixia, cortando o fluxo de dólares que imigrantes cubanos nos EUA enviam às suas famílias e dificultando viagens à Cuba. Quer criar meios de punir empresários, inclusive de outros países, que fazem negócios com a ilha.

O primeiro alvo são os 1,3 milhões de imigrantes cubanos residentes nos EUA e que mantêm laços familiares, afetivos e solidários com Cuba. Deles vai uma parte importante da renda dos parentes que ficaram na ilha. Por ano, cada um pode mandar US$ 1,2 mil. Em tese. A partir de junho, quando as medidas entrarão em vigor, essa ajuda não poderá ser enviada a famílias ligadas ao Partido Comunista, nem a parentes de segundo grau, o que deve afetar a maioria dos casos. Levar dinheiro pessoalmente será impossível. Viagens a Cuba só poderão ser feitas a cada 3 anos, com o limite máximo de U$ 50 dólares para cada dia de permanência.

Ao mesmo tempo, o plano mira os cubanos da ilha. Bush pretende desnortear corações e mentes com a mesma máquina de guerra usada para manter a adesão amedrontada dos norte-americanos: a propaganda maciça e controlada pela Casa Branca. Neste caso, terão voz os contra-revolucionários de Miami, acusados de uma seqüência de atos terroristas contra Cuba.

Para isso, o plano requer o "deslocamento imediato" de aviões "C-130 Comando Solo" para criar plataforma que permita as transmissões da Rádio e Televisão Marti. São emissoras baseadas nos Estados Unidos e dirigidas a Cuba, hoje barradas por interferência cubana.


Pretexto para armas

Transtornar as relações entre cubanos e emigrados parece ter objetivos mais militares do que econômicos. Cuba já está cercada. A Leste, Guantánamo e o Haiti sob golpe de Estado. Ao Sul, os militares do Plano Colômbia.

Pretexto para invadir - possibilidade que preocupa também a Venezuela -, não há. Mas para os cubanos, o estopim acaba de ser montado. A asfixia econômica, a separação de famílias, a busca desesperada de melhores condições de vida, podem ter o mesmo efeito da crise dos anos noventa que reduziu, nos primeiros três anos, o PIB da ilha em quase 35% e provocou, em 1994, o famoso êxodo de balseiros de agosto de 1994. A lei Helms-Burton permite aos EUA, desde 1996, interpretar uma nova onda de imigrantes como um ato de guerra e motivo para uma resposta militar.

O ministro Perez Roque acusa Bush de forçar a crise migratória, aumentando a pressão até que exploda. A intenção por trás do plano é apontada também por cubanos de oposição à Fidel. Eloy Gutiérrez Menoyo, dissidente que está de volta à Cuba, interpreta o gesto de Bush "como praticamente uma incitação ao conflito armado". De modo geral, o relatório de Noriega foi mal visto por todos os grupos de oposição considerados não extremistas e formados no exílio, como Cambio Cubano, Arco Progressista e Projeto Varela.


Nunca em Cuba

O governo cubano reagiu ao plano de Bush com esforços diplomáticos em busca de apoio internacional (na ONU, OMC, OMS e relações bilaterais). Também adotou medidas duras dentro de casa. Elas beiram o racionamento de guerra. Ainda assim, obteve o apoio de uma das maiores mobilizações jamais vistas. A dimensão é maior se considerado que o ato restringiu-se à Capital, Havana, e foi convocado na véspera. A maré de protestos invadiu a avenida à beira-mar do Malecón, em frente à Oficina de Interesses dos Estados Unidos em Havana (em Cuba não existe embaixada norte-americana).

O sentimento cubano foi traduzido em cartazes com a foto ampliada da militar norte-americana que arrastava pela coleira um prisioneiro iraquiano. Sob ela, frase sintética: "Em Cuba, jamais acontecerá". Agudo como sempre, Fidel sinalizou aos cubanos que os dias vindouros serão terríveis. Disse a Bush que a resistência será feroz.

Considerando que o presidente norte-americano está disposto a decretar a morte da revolução cubana, Fidel não fez por menos: "Salve, César. Aqueles que vão morrer te saúdam", ousou o presidente cubano, recorrendo à famosa frase dos gladiadores ao imperador romano.

O calor de Havana indica que a população pode estar disposta a enfrentar a fome e andar descalça para suportar a radicalização do embargo econômico. Curvar-se está fora de questão. "Este povo pode ser exterminado, varrido da face da terra, mas jamais subjugado nem humilhado", avisou Fidel.


Pesadelo anunciado

As cenas de rua das vésperas do protesto de Havana não deixavam prever o espetáculo do dia 13. A mesma população altiva contra Bush podia ser vista correndo aflita às lojas que vendem produtos em dólares, para tentar estocar alimentos e produtos de higiene importados, os poucos itens permitidos pelo governo até um ajuste geral de preços que tornará a vida na ilha ainda mais difícil.

Enquanto procura induzir a população a investir o que tem em comida, o pacote de Fidel limita dramaticamente a possibilidade de consumo de outros gêneros quase igualmente importantes. Para uma população que usa as TRD - Rede de Lojas Recuperadoras de Divisas que se baseiam na moeda norte-americana - para compra de roupas, sapatos ou produtos para casa, as medidas não poderiam ser mais impopulares. Os preços dos combustíveis também voltaram a ser proibitivos para boa parte dos cubanos.

A gravidade do momento é indicada à população pelo fato de o pacote de 15 medidas não ser formalmente atribuído ao governo nem ao Partido Comunista, mas sim à "Revolução, apoiada em sua longa experiência, sua equanimidade e na sólida unidade e elevada cultura política de seu povo". Esse recurso só é utilizado em Cuba quando o regime é ameaçado e requer coesão nacional contra a ameaça. "Neste instante, a esfera política alcança sua máxima importância", diz nota oficial.

A população prepara seu espírito para a possibilidade de sobreviver na pobreza aguda. Mas o que Cuba chama de essencial - e que será garantido - desafia a lógica segundo a qual desemprego e a redução de gastos sociais são males inevitáveis em tempos de crise econômica.

A "ração de guerra" estabelecida por Cuba utiliza o avesso da receita neoliberal: é composta de políticas para manter os níveis de emprego mais altos do mundo (97,5%), educação e saúde pública para todos, acesso aos alimentos básicos a preços abaixo do custo. A produção cultural também será protegida. São bens e serviços que, "sem privilégios de nenhuma índole, devem ser recebidos por toda a população do país", como frisa a nota oficial. Qualquer coisa fora isso - incluindo vestuário, bebidas, acesso à internet e combustível - terá peso de ouro até que a crise seja superada.


Alvo fácil?

O fantasma que assombra Cuba está contido em 450 páginas, organizadas em seis capítulos por Roger Noriega, sub-secretário de Estado para assuntos da América Latina e representante dos contra-revolucionários cubanos no governo Bush. O conjunto da obra leva o nome de ?Relatório da Comissão de Ajuda a uma Cuba Livre? e prevê a ingerência radical dos EUA para forçar uma "transição democrática" do regime cubano.

"Fácil de atacar, perfeita para a valentia estilo Texas", define o lingüista norte-americano Noam Chomsky ao explicar, ao jornal mexicano La Jornada, por que Cuba foi escolhida para aplacar o descontentamento norte-americano. Reinventar um inimigo - à moda de Reagan - parece ao governo o melhor remédio para manter a adesão do "povo [o norte-americano] mais assustado do mundo", na opinião de Chomsky.

O relatório não poupa os norte-americanos de novas mentiras para justificar uma intromissão na vida cubana. Bush promete vacinar todas as criancinhas cubanas logo após a vitória, uma ofensa para o país onde não faltam remédios e que tem índices de mortalidade infantil menores do que os EUA.

(Publicado em Porto Alegre 2003: 20/05/2004)

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