quinta-feira, 27 de maio de 2004

inventário: poucos bens, alguns tesouros. não vou falar da família porque pareceria discurso obrigatório clichezístico formal, o que seria (o parecer) uma injustiça com a sinceridade dos meus sentimentos. são todos mais que tesouros, são de onde eu chupo, sugo, extraio minhas forças, o melhor da minha vida, aquilo tudo o que qualquer um também diria de sua família se ela fosse como a minha (e não estaria errado em exagerar um pouquinho).
fora isso, tenho amigos, ou acho que tenho e me contento com a possibilidade de partilhar espaços, pensamentos, cervejinha, carinho, besteirol e visões de mundo com grandes, raros e incríveis seres que habitam nosso pobre (de espírito também) planeta, que eles ajudam a tornar mais suportável. ou mais complicado, dependendo da ocasião.
e tenho uma casa e um bairro - aqui pertinho um oceano inteiro - e uma cidade onde gostaria de morar eternamente enquanto não explodirem, coisa que pode estar perto de acontecer. e em toda parte tenho a porta aberta pro mundo quando der na telha (embora não possua grana que possibilite a realização de grandes sonhos viajantes no momento, mas quem sabe um dia).
tenho saúde (pelo menos física), disposição (pelo menos em certas horas do dia e certos dias da semana), a capacidade de trabalhar e o gosto pelo que sei fazer (também neste assunto, nem sempre a oportunidade de exercer meus, digamos, talentos de modo conveniente e justamente remunerado - mas às vezes um danoninho vale por um churrasco de boi inteiro).
tenho um certo entusiasmo pululante - que em épocas de inverno emocional se faz de morto mas é só dar um assovio que ele desperta (bem, às vezes tem que ir lá pegar à força, mas sabemos que ele existe, mesmo que seja no modo avestruz).
e tenho um raríssimo exemplar, talvez único, de Pinguim Avuador Gigante de Olho Azul do Extremíssimo Sul, oculto a sete chaves virtuais num ponto qualquer da Terra que às vezes até eu mesma não acho, mas que me aparece ao vivo e some de repente como pluft o fantasminha, pra manter a ilusão de sua existência real. ou me leva nos seus vôos de pinguim (seriam sonhos?) pruns lugares que vou te contar, ninguém acredita: no espaço sideral.
tenho saudades. grandes, imensas, abrangentes, do que vivi e do que não vivi, do que conheci e do que não conheci, do que passou e do que ainda não veio, do que mudou e do que ainda espero que mude, do que não era bem como eu pensava e do que foi melhor do que eu podia imaginar, de tudo que já existiu e do que simplesmente não existe nem existirá. não deixo por menos.
tenho saudades (ou que outro nome tenha este buraco do que falta) porque tenho sonhos, muitos, o tempo todo, e alguns eu realizo, outros não, como todo mundo. (talvez eu tenha mais sonhos infantis irrealizáveis que a média das pessoas, mas tudo bem, ainda não pude fazer nada quanto a isso, e até que tenho tentado, com a inestimável ajuda dos assistentes do dr. Freud).
então eu me viro com o que tenho, meus cantinhos, meus amores, meus pavores, minha história, minhas memórias, meus planos, meus desejos impossíveis e meus furos, frustrações e adiamentos (tudo meu, tudo meu!), mas sabe, hoje isto não me parece tão ruim. (aliás, hoje nada me parece ruim, e olha que não ingeri nada estranho, dieta normal).
e sim, me faltam algumas coisas que eu diria fundamentais - mas no momento falo do que possuo. (o que não me impediria de incluir as lacunas como pertences, não é? buracos rotulados. só pra não deixar nada de fora).
este inventário é pra me ajudar a perceber que tenho muito o que perder. tenho que cuidar do futuro, do presente e até do passado (pra não desmanchar o castelo tirando uma pedra olê olê olá, assim de bobeira). tenho que prestar mais atenção no que tenho, tou rica, tenho que parar de viver semanas-não só porque não são completas, tenho que espremer o suquinho de pedra de cada dia e correr atrás das mudanças e alegrias possíveis. (ai que cansaço. ser feliz dá muito trabalho).
mas tem uma coisa: deixar herança, acho que não vai dar não. tenho a impressão de que vou torrar tudo antes de morrer.

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