domingo, 29 de agosto de 2004

Assistindo ao documentário Promises (Promessas de um novo mundo), aquele sobre crianças árabes e israelenses da Palestina, eu me dei conta, internamente, de um detalhe discutido mil vezes na teoria mas nunca dantes realmente absorvido:
só os privilegiados podem ser bonzinhos impunemente.

Bonzinhos, digo: justos nas intenções, quase isentos, quase imparciais ao julgar desigualdades de direitos, desigualdades de acesso aos bens indispensáveis à vida e essas coisas todas.
E eu disse que podem ser, não que sejam.

Porque só os privilegiados têm acesso livre aos dois lados de todos os muros.
Só eles conhecem o que os outros estão perdendo.
Só eles podem ser condescendentes e renunciar aos privilégios.
Só eles não estão pondo a sobrevivência em risco cada vez que opinam sobre esses assuntos.
Só eles podem falar baixo, ter educação e boas maneiras, expor argumentos racionalmente e ser ouvidos por seus pares.
Só eles podem falar de paz, podem querer que tudo se resolva pacificamente, sem traumas.
Basta que cedam em seu poder, que abandonem seus privilégios e entreguem a parte que não lhes caberia por justiça. Tão fácil.

Também falo de nós, da classe média, e não só dos absurdamente privilegiados.
Falo de quem tem algum acesso a algum poder para resolver algum problema sem precisar de tocar o terror.

Quando a gente trabalha numa área carente de atenção, para um público carente de poder, a tentação está em tentar ser um(a) igual, disfarçar as diferenças aparentes.
Mas não é preciso quebrar barreiras pela identificação - condescendente, forçada - com o modo de vida dessa parcela da população, e sim com seus objetivos.

Porque os excluídos do mundo das decisões não estão precisando de "iguais" de outros mundos.
A consciência política que desemboca em ação transformadora não vem de fora, como a gente pensava na época infantil da militância política.
Vem da necessidade de ultrapassar o bloqueio da expressão, de ultrapassar os guetos e ser aceito e ouvido e atendido sem depender da condescendência e solidariedade pessoal dos "incluídos".

A ação que deriva desta necessidade pode não ser muito consistente ou preocupada com o futuro, pode ser inconseqüente ou ter conseqüências imprevisíveis, como um quebra-quebra de trens que enguiçam, como um bloqueio de estrada próxima a acampamento de sem-terra pra roubar cargas de caminhões, como um funk-brabeira de apologia aos donos do morro, modelos de imposição do "ponto de vista" dos excluídos pelas vias mais convincentes.

Mas eles não precisam de aliados que falem por eles. Precisam de novos patamares de ação, de alcance de voz, de se apropriar de instrumentos pra fazer valer sua voz e, então sim, poderem falar de igual para igual com os poderes todos. Sem precisar de tocar o terror pra ter atenção.

Tudo tão óbvio, tão sabido e discutido desde sempre, por estudiosos dos movimentos populares como Paulo Freire, não é? mas eu ainda não tinha mudado lá por dentro a ilusão de "dar consciência", de "esclarecer" pela educação.
No entanto, o melhor modo de esclarecer não é falar, é deixar falar. É dar, não a "consciência", mas a oportunidade de cultivar a consciência onde ela pode brotar.

Foi assistindo Promises que eu entendi melhor os meus limites, e o alcance da instituição em que trabalho.


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girassol

vermelho

azul

laranja

totó

cozinha

dias de luz, festa de sol.


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Estou gostando muito do meu trabalho, a ponto de sonhar ou tentar aperfeiçoar coisas durante a madrugada. Já desisti de me policiar nisto, o envolvimento total faz parte da constituição híldica. Como dizia Roberto Freire, sem tesão não há solução.

Por coincidência, a instituição fica numa região fisicamente carente também, mas o lugar não é tão importante, porque nosso público-alvo não são os nossos vizinhos. (O lugar só é pregnante quando voam balas sem endereço. Aí este se torna o detalhe mais importante das nossas inseguras vidas de população-alvo. Mas isto não é privilégio das áreas da linha 2 do metrô: no outro dia mesmo cheguei em casa, na Princesinha do Mar, e havia uma guerra no meio da rua, túnel fechado e carros da polícia sibilantes passando sobre as calçadas).


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Meu hóspede canino, que se chama Luke Skywalker, vai embora no domingo que vem.
Talvez. Quem sabe. Se ele quiser e/ou se eu permitir.


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Adorei minha festa de aniversário, no sábado mais passado. Senti falta de quem não veio, mas fiquei tão feliz com as presenças queridas brilhando os dentes brancos no escuro azulado, jogando totó na cozinha, tomando café da manhã na padaria, reafirmando certezas múltiplas e mútuas, tecendo redes quase visíveis, entendendo o valor do tempo.


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Não estou voltando ao querido diário. Mas, entende, cada um reata laços com "amiguinhos do primário" como pode, e às vezes dá vontade de contar como vai tudo por aqui.
Olá, amiguinhos do primário recém-conhecidos. Por aqui vai tudo bem, obrigada.

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