quinta-feira, 2 de junho de 2005

And more, much more than this,
I do it my way.


O mundo é um lugar de onde não se pode fugir -
os vigilantes estão em toda parte
nas linhas de produção com suas leis e costumes moldando comportamentos em bloco,
seus olhões de big-brother vigiando nossa ginástica obrigatória matinal
e as palavras proibidas.

Sim, este é um discurso da adolescência, registrado para a posteridade na última página do caderno de Português, já que os blogs ainda não existiam.
Todo mundo já teve um.
Desde 1984 - o livro - descoberto aos dezesseis anos, a ficção ameaça o Planeta Ideal onde eu cresci entre familiares, vizinhança e professores controladores, com um futuro supercontrolado por instâncias governativas com poder absoluto, ainda maior que o dos meus pais, sobre meu destino. Hum... seria o Reino Unido, onde o sol nunca se põe? Seriam os Estados Unidos? a União Soviética? seria a União Galáctica? tanta união assim, só pra ferrar com os indivíduos dispersos, e com as meninas que nunca poderiam chegar em casa depois das 22 horas.
Essa aflição de não haver escolhas, só obediência - e alguma revolta esporádica, mixuruca e facilmente debelável - me assombrou por longos anos, os da ditadura inclusive.
Mas na real, no passado ou no presente vivido, não foram e não são tanto as instituições oficialmente repressoras, mas principalmente as "pressões sociais" vagamente identificadas que exerceram e exercem o controle do comportamento.
Sim, eu sei que você sabe que todos sabemos que os vilões mais óbvios são os meios de comunicação, que são a mensagem, e a propaganda, que é a alma do negócio, e seu conhecido elenco de ordens - coma, veja, ande, compre, sinta, seja - que, envergonhados de nossa inferioridade frente aos modelos do que deveríamos ser, obedecemos.
Mas não vamos esquecer dos manuais de conduta das novelas e testes das revistas femininas, dos conselhos de auto-ajuda distribuídos - por módicas quantias - por magos, anjos e celebridades BBB, e dos regulamentos de condomínio, e dos especialistas com seus laudos incontestáveis, e "famosos" que palpitam como autoridades em assuntos que desconhecem, e autoridades reconhecidas que palpitam nos demais assuntos que desconhecem, e boatos ou fofocas que viram notícia sem necessidade de comprovação - e por todo lado um público ansioso por repetir e imitar e acatar o que não entende, e nem quer se dar ao trabalho de entender.
Vítimas de injustiças, reclamamos com piadas e ranzinzamos em filas, e este é o máximo de protesto coletivo que brota das tais massas oprimidas por rolos de fazer pastel.
Oh, a revolução que não veio. A revolução mundial dos próprios narizes, digo, dos costumes, aquela que nos tornaria senhores [e senhoras, claro] do destino, a impossível revolução para conquistar a renúncia ao poder sobre os outros. Como é bom, e autoritário, sonhar com um Futuro Feliz para Toda a Humanidade.
Geralmente a gente perde as ilusões megalomaníacas e desiste da luta assim que conhece a tal Humanidade - que, aliás, nunca pediu para ser libertada - mais de perto, mas daí a abdicar do poder de decisão sobre a própria vida, vai uma longa distância.

Mas vem cá, este encaretamento acelerado do mundo não está te incomodando?
Pois o avanço do lado afro-descendente da Força está me assustando como um filme de terror sobre as ditaduras do futuro.
Essas crenças medievais desenterradas se transformando em lei, e a interferência agressiva de uma "censura social" a costumes e comportamentos diferentes dos padrões classe-média-anos 50, e cartilhas de palavras "desaconselháveis", e gente disposta a recuperar algemas partidas a muito custo, e as regras da "modernidade" padronizando o que já foi liberto de fôrmas e bitolas no passado.
E o povo, o povão sempre excluído, tomando enfim o poder: as armas do tráfico e os pastores de seitas ditando as únicas leis respeitadas no país.

Mas por que me incomoda tanto o progresso do atraso, se sou adulta faz tempo e tenho o direito de resolver o que faz bem ao catzo da minha vida cheia de som, fúria e esplendor, sem ligar para os julgamentos alheios?
É que, por exemplo, se eu fumasse, certamente logo-logo um cidadão respeitável e consciente tomaria o cigarro das minhas mãos e jogaria no lixo, pra meu próprio bem - a mesma coisa que me assustava na adolescência.
Mas não há como fugir da correnteza social que sempre puxa pra trás, nem deixando a Grande Cidade, nem deixando a Cidade do Interior, nem abandonando o Terceiro Mundo, nem percorrendo a Terra de geleiras a desertos, nem singrando mares distantes atrás da onda perfeita.
O paraíso apenas dentro de você está, Padawan.

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Então, temporariamente de volta ao meu Paraíso Primitivo, começo a exercitar a tolerância cada vez que piso na rua. E pra me divertir, faço planos. Resolvi trocar a moto dos sonhos por um carro esquisito para suportar este trânsito e afastar o crime da minha janela. Uma Parati vermelha de portas amarelas, ou com girassóis pintados. Uma Land Rover de 1970. Uma jardineira de lados de madeira, dos anos 50. Uma picape de surfista, com uma prancha cenográfica fixa no bagageiro do teto e ondas aplicadas nos lados, tipo flames, com respingos de resina no vidro. Uma Marajó como a que eu tive, valente, poderosa, cheia de lama nos pneus e com o cachorro no porta-malas. Aliás, todas elas off-road, fora de linha, valentes, poderosas, de personalidade forte, de baixo IPVA, nenhum alarme e com o cachorro no porta-malas.
E passageiros nos demais bancos, que disso eu sei que não escapo.

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Fomos ao cinema num horário de pico mas não pudemos entrar, tudo cheio. Para não perder a noite viajamos até o outro lado da baía, pra ver nossa cidade de frente.
Brindamos à nossa volta à vida caótica, à linda vista, e principalmente ao bar, delícia das delícias.
A porta do banheiro falava como Chewbacca, mas não entendi o que queria me dizer.
Voltamos ao cinema outro dia no horário do almoço, morrendo de medo das senhoras-que-assistem-filme-como-se-vissem-novela-em-casa. Elas conversam alto e comentam e gritam "não faz isso, meu filho, sai daí, ele quer te matar". Mas felizmente não apreciam aquele tipo de filme barulhento que perturba sua conversa.

A tecnologia de ponta é um mistério para os técnicos. Faltou som e não sabiam consertar. Depois o som consertou-se sozinho, e não podiam repetir o pedaço do filme prejudicado, porque levaria 40 minutos para reiniciar. Então ficou por isso mesmo, e nós perdoamos tudo por penitência, por termos acreditado tão inocentemente nos superpoderes da tecnologia.

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E você viu, não viu?, aqueles robôs que se reproduzem sozinhos. E um documentário da Discovery com os clones que não deram certo e não são divulgados pela imprensa, com malformações que o pior monstro de ficção não ousou exibir.
Nada contra o avanço das pesquisas. É só pra dizer que prefiro que os robôs se reproduzam sozinhos, desde que sejam imunes à fome de lucro que pode transformar os humanos em monstros que se reproduzem com assistência.

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Ah, não pense que eu detesto tudo o que critico. Eu adoro isto aqui, e as férias fora da temporada, e falar besteira, e fazer besteira, e viajar hippiemente desarmada pelo mundo cruel e ameaçador, e dançar numa festa de fantasmas, e voar perigosamente sobre suas cabeças indefesas, e escrever blog sem identificar os leitores.

Um dos livros que adorei ler foi o Homem dos Dados, que regia sua vida apenas pelo acaso, mas nunca tive coragem para chegar a tanto: "se o planejamento e o razoável nos conduzem ao inferno de vida que conseguimos ter, por que temer os resultados de decisões completamente aleatórias?"

Eu sei que você nunca vai se perdoar pelas oportunidades desperdiçadas, eu sei, eu sei. Mas siga em frente, que atrás vem um caminhão sem freios.

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Sem mais, me despeço desejando a todos um feliz natal e próspero ano novo.

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