terça-feira, 20 de abril de 2004

"Rio, 1973:
Fui ver a exposição do Marquinhos. A galeria é pequena mas muito legal, transparente, só destaca as obras. Ele veio contente, me abraçou muito, mas não saiu do lugar. Ficou lá sentado fingindo que lia, me observando de longe. Então eu fazia caras de intensa admiração, no começo, pra acalmá-lo, mas depois até esqueci dele e devo ter feito caras arregaladas de espanto incontido, porque as instalações eram realmente muito boas.
Marquinhos continua aquela figura, cada vez mais magro, cabelos mais compridos voando pros lados e as lentes mais fundo-de-garrafa, mas sabe que nem parece feio como antes? acho que o trabalho revelou suas belas entranhas.
Um dos objetos é um caleidoscópio, disfarçado externamente como se fosse uma luneta, posto em frente a uma tela branca iluminada. A gente olha por ele, gira como se acertasse o foco, e aparecem as sempre incríveis imagens caleidoscópicas em movimento.

Rio, 2 de abril de 1969
Não, moço: com o tempo as coisas não vão melhorar. O tempo sozinho não faz o mundo progredir, futuro não é evolução automática. Precisamos de ação, de pessoas fazendo as coisas, precisamos escolher pra onde vamos. O pior de tudo é que às vezes essa diversidade, essa riqueza de possibilidades, esse amplo leque de opções me irrita.


Outro objeto é uma Caixa de Pandora protegida por um biombo num canto da sala, com uma inscrição na tampa: Não abra. Futuro em perigo. Atrás do biombo, abro devagarinho até ler o que está escrito no fundo da caixa: Arrisque - ultrapasse - liberte-se - o futuro é seu.

Eu sempre desejei controlar a humanidade só um pouquinho, o suficiente para forçar cada um a viver sua própria vida respeitando os outros, não me enchendo o saco com opiniões idiotas que eu não pedi, não tentando me obrigar a me comportar como eles. A hipocrisia me enoja, eu preciso ser autêntica.

Outro objeto é uma bacia cheia de líquido e uma colher de cabo muito comprido para os visitantes interferirem na obra. A gente mexe na tinta oleosa que bóia na água, formando desenhos e misturando cores em movimento contínuo.
Levanto a colher e deixo o líquido pingar, formando círculos, o movimento das cores pode hipnotizar tanto que a gente se esquece da vida real. Quando as ondas se acalmam vejo o meu reflexo na bacia e lembro do meu amigo ansioso, querendo saber minha opinião sobre seu trabalho. Ia chegar perto dele pra dizer, mas é bobagem. Numa altura dessas já deu pra notar de longe o que estou achando.

E também sempre evitei intimidade com vizinhos e pessoas simpáticas que puxavam assunto no ônibus ou no elevador. Mas afirmar diferenças o tempo todo me isola, discutir profundidades o tempo todo me deixa eternamente preocupada. Agora eu ando sentindo falta das pessoas simples, daquelas bem comuns, das conversas bobas que não levam a nada, para me distrair um pouco dessa vida tensa."

(d'Os Anos Oito)

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