sábado, 29 de novembro de 2003

"Peguei Ana Luísa e entrei em casa pra tentar explicar como se deveria receber as visitas, especialmente aquele moço que voltaria muitas vezes, afinal ela já tem quatro anos. Pedro ficou no quintal e não teve outro jeito senão experimentar o tempero imaginário das folhinhas picadas que minha irmã Cláudia lhe oferecia com insistência.

Rio, 15 de março de 1968
Marquinhos quer me matar. Ele não aceita que eu deixe de ser artista pra me dedicar exclusivamente à militância política. Ele diz que na política tudo depende da comunicação, e os nossos objetivos estão além da compreensão imediata das massas.


Enquanto atravessava a sala tentei apresentar meu namorado a Edu e Henrique, que também não lhe deram a menor atenção. Pedro, com jeito de intelectual francês, de suéter, cabelo curto e cavanhaque, não devia estar nada à vontade no meio daqueles hippies totalmente ausentes, imóveis, meditando sentados nas almofadas indianas, envoltos na fumaça do incenso.Também, eu é que escolhi a hora errada, mas sabia que Pedro não entenderia se eu tentasse explicar.
Ele ficou lá de pé observando a estranha cena congelada, sem perceber que estava sozinho com os dois, em transe ele também. Chamei da cozinha e Pedro acordou num pulo, surgiu do meu lado num raio, trazendo nos olhos um vago medo de ser teletransportado por forças mentais desconhecidas para lugares além da imaginação.

É necessária uma percepção profunda, que os artistas verdadeiros possuem naturalmente por ultrapassarem o senso comum. Mobilizar as energias sociais é uma capacidade própria dos visionários como nós, os mensageiros do Novo Mundo.

Nesta vila alguns vizinhos parecem simpáticos a nós, não somos aquela gente estranha, somos aqueles jovens alegres de hábitos moderninhos. Quase todos os moradores da vila são idosos e costumam conversar na porta de suas casas. Chegou uma alegre vovozinha no portão trazendo doces num prato para as crianças e eu lhe dei frutas de nosso quintal em retribuição.
Pedro ficou mais calmo vendo aquela cena tão Família e acho que se esqueceu do choque cultural que enfrentou na sala. Em pouco tempo já estava com Ana Luísa em seu colo, ensinando Cláudia a fazer um sapo que pula, dobrando guardanapos de papel.

Sei lá, não devo ser artista verdadeira. Acho difícil mobilizar a sociedade com meu trabalho, não sei se os meios de expressão que utilizamos são compreendidos, não sei se alguém percebe o Novo Mundo nas imagens que criei. Mas estou certa de que comunicação é mais do que palavras".

(d'Os Anos Oito, o livro que não terminou).

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