domingo, 21 de março de 2004

Uma das coisas mais interessantes que já ouvi nos últimos tempos foi uma espécie de aula indireta sobre os processos atuais que evidenciam a mudança do conceito de "normalidade". Os novos "erros", "transgressões" e pavores da sociedade ocidental em transição.
Nenhuma surpresa, mas arruma e dá sentido a leituras e palpites dispersos.
Bem por alto: a "normalidade" teria se deslocado da antiga submissão geral, e muitas vezes obrigatória, a padrões unificadores dominantes (com punição dos transgressores, como os homossexuais em algumas sociedades), para a aceitação de vários grupos onde nos encaixamos por escolha própria (mas sob pressão social pra que haja encaixe), sem punição formal para antigos desvios. Sem castigos outros que não a nossa "culpa", a responsabilidade pelos nossos atos, já que estaríamos informados pela mídia das conseqüências - sendo estas conseqüências o castigo principal (e aí não importa se as informações são instáveis, ou se contradizem, ou estão truncadas, ou ainda são incipientes, ou não atingem a todos). Você pode se assumir como homossexual, mas tem que fazer sexo seguro.

Na área da saúde, aliás, afirmações tipo "só é gordo quem quer", "morre de câncer e aids quem se alimentou e se comportou inadequadamente", e por aí vai, são a condenação prévia a todos os nossos hábitos não-saudáveis ("mas também, com aquela vida desregrada, queria o quê? tinha que morrer assim.")
O pior pavor passa a ser não ter evitado as doenças, a morte "assim". Não ter orientado as crianças, não ter evitado as "porcarias" desde criança, não conhecer todos os avanços da ciência que garantem um futuro.

Porque o futuro, que antes servia pra se fazer planos de vida, que guardava a esperança do mundo melhor, vira a meta a alcançar por ter escapado de trocentas e setenta e oito auto-armadilhas: ter sobrevivido é o mérito (e não é da questão financeira de que se trata aqui, e nem mesmo das balas perdidas e outros acidentes).

Tipo "você é livre pra fuder com sua vida, mas nós o apontaremos nas ruas como irresponsável o tempo todo".
(Pensando bem, não tão diferente do que sempre foi, o apontar. Talvez diferente seja, pros desviantes involuntários, viver correndo atrás de um prejuízo irrecuperável.)

E o Globo Repórter vai te jogando no estresse de obedecer manuais do Jornal da Família, com seus sacrifícios infindáveis pra atingir o céu e/ou pra chegar aos 200 com corpinho de 100, porque tudo o que a gente gosta, você sabe, é ilegal, é imoral ou engorda.

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pp: acho que não devia precisar, mas talvez precise, esclarecer que não acho ruim ser saudável - e até tento, razoavelmente. Como você imagina, minha vida é plácida, frugal e mesmo, por que não dizer, lírica.
Achei muito legal foi esta explicitação da "culpa social" dos novos "anormais", mesmo não sendo novidade.

pp2: a culpa judaico-cristã vai me matar antes dos vícios.

pp3: quando a tese for publicada eu ponho os créditos, por enquanto não sei.

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